DIREITOS HUMANOS PRIORIZADOS PELA JUSTIA*
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BELISRIO DOS SANTOS JR.
Ex-Secretrio da Justia e da Cidadania
do Governo de So Paulo
Eduardo Galeano, cidado
latino-americano, recolheu em uma pesquisa nos subrbios de
Montevidu esta frase, de extrema fora e sabedoria: "Ns
estamos com a democracia, mas a democracia no est
conosco".
Como chegamos a tal paradoxo?
Interessante exerccio para a compreenso da histria recente
do Brasil e da Amrica Latina est em proceder diviso dos
ltimos anos para identificao dos climas polticos bsicos
predominantes em cada dcada, aps a 2 Gerra Mundial.
Realizando tal proposta, Hlio Gallardo (in Elementos Polticos
en Amrica Latina) adverte que as dcadas no assinalam oincio
e o trmino de cada clima mas constituem indicadores de uma nfase
cuja nucleao, e portanto sua capacidade de irradiao e
ressonncia (funes do deslocamento nas posies e relaes
dos atores polticos bsicos), se encontra ao redor
de determinados anos.
Com tal ressalva, podemos apontar as seguintes representaes
como indicadoras do clima poltico na Amrica Latina.
a) dcada de cinqenta : desenvolvimento;
b) dcada de sessenta : revoluo - libertao;
c) dcada de setenta : segurana nacional - direitos humanos;
d) dcada de oitenta : democratizao.
claro que as imagens-valores bsicos projetam-se de uma dcada
para outra, ainda que isso ocorra em outro eixo de significao.
igualmente bvio que as palavras-chave apontadas no
indicam esgotamento ou mesmo a realizao da idia central.
Por exemplo, quando se localiza nos anos setenta o binmio
segurana nacional-direitos humanos, no se quer dizer que a
idia segurana nacional no tenha defensores nos anos
oitenta ou mesmo hoje... ou que a luta pelos direitos humanos
esteja superada ou seja discipienda. A XVII Conferncia de Exrcitos
Americanos, realizada em novembro de 1987, em Mar del Plata,
entre outros ndices, deu conta de estar em curso uma
denominada estratgia democrtica da Segurana Nacional (e
conseqentes novos conceitos: tutela das Foras Armadas para
as democracias nascentes, conflitos de baixa intensidade, etc.).
O novo discurso da segurana nacional se d em novo contexto,
no mais justificando a violao dos direitos humanos mais
elementares, mas centrando-se no controle dos processos de
transio democracia, recuo a que correspondeu uma mudana
dos movimentos sociais, que aram de uma situao de defesa
(denncias de violaes de direitos humanos) para um
estado de avano (reconquista das liberdades civis e polticas,
de incio), quadro ou clima caracterizado nos anos oitenta pelo
seu valor: democratizao. Aqui tambm, diga-se mais uma vez,
a idia central no significa sua implementao, mas jogo de
fatores e atores sociais em seu redor. O incio dos anos
noventa antecipou a desiluso da frase resgatada por Galeano. A
democracia no serviu para resolver todos os problemas que,
pensava-se, com seu advento deveriam estar sanados.
Efetivamente, a recuperao das liberdade civis e polticas
foi acompanhada de plena vigncia de garantias judiciais (v.g.,
o habeas corpus e o mandado de segurana) e de mecanismos
institucionais (v.g., o voto, a possibilidade de organizao
de partidos polticos) que deveriam assegurar a preservao
dos direitos enucleados em torno da palavra liberdade. Ocorre
que tal aparente recuperao foi acompanhada pela presena de
duas caractersticas que praticamente a anulam. De um lado,
conservamos (mesmo aps a Constituio de 88) alguns vcios
de nosso sistema representativo. Gerados na poca da
ditadura, se externam pelo superdimensionamento da representao
das regies de menor populao, de mais precria cultura e
mais dependentes do governo federal e agora tambm pela elevao
de territrios a estados e pela criao artificial de novas
unidades federativas. De outro lado, um novo protagonista - o
poder econmico - ou a influir decisivamente no processo
eleitoral, seja manipulando os meios massivos de comunicao,
seja prestigiando a crescente corporativizao do Parlamento.
De outra parte, o aparato estatal revelou-se eficaz para a proteo
dos direitos individuais de uma minoria privilegiada,
notadamente do direito propriedade e outros direitos
patrimoniais, mas lento e burocrtico, quando no ineficiente,
na tutela do direito vida, segurana de amplos setores
desfavorecidos economicamente. Ademais de ineficiente, o Estado,
por vezes, permite que dentro dela se gerem bandos organizados,
para violao do prprio direito vida, como se viu em
casos recentes, notadamente no RJ. A tudo isso se soma a
crescente demanda pelo atendimento s necessidades bsicas do
indivduo e da coletividade, vinculadas sade, habitao,
ao lazer, previdncia social, educao, ao trabalho, ao
o cultura, luta que vem sendo mais e mais reconhecida
como importante para conquista de espao poltico da
cidadania.
Tais necessidades so hoje entendidas como verdadeiros direitos
- direitos econmicos sociais e culturais - e se exprimem em
torno do conceito de igualdade. Estes direitos foram
extremamente espezinhados durante o regime militar.
Como contribuir a democracia para atend-los?
Como se conciliaro o avano tecnolgico e os bolses de
pobreza?
Criticando aqueles que entendem que o poder est no Estado e no
na Sociedade, deles fala Herbert de Souza, Betinho:
"Olham somente para uma sociedade branca, motorizada,
empregada, rica, sofisticada, integrada ao mercado formal. Olham
para um Canad que existe no Brasil e se esquecem do resto. Esto
preocupados com a reforma fiscal, a estabilizao, a violncia
urbana, a integrao no chamado Primeiro Mundo, com a
sofisticao da industrializao, com o que chamamos
modernidade."
E conclui, dizendo ser essa a agenda da classe dominante, mas no
a agenda da fome (Folha de So Paulo, de 26.10.93, p.3).
Essa e outras pistas indicam que os anos noventa se iniciam com
a ateno voltada para o binmio: modernidade - igualdade. Em
outras palavras: direitos humanos visto pelo ngulo da Justia.
Em princpio no h distino entre justia social e justia
legal. Para o senso comum do cidado e mesmo do operador do
direito, no h a distino entre as duas. Seria
contra-senso imaginar que a justia legal possa opor-se
realizao da justia social. Uma seria o instrumento da
outra. A realidade, no entanto, no pode ser bem essa. Joaquim
Falco lembra que, nos tempos modernos, a justia enquanto
ideal social foi apropriada pelo Estado e por sua ordem legal.
De onde, para o senso comum, ampliar o direito estatal e fazer
justia legal caminho privilegiado e qui exclusivo de
praticar justia social. Conclui Joaquim Falco que tal
apropriao no gratuita. Ela toma forma com a associao
do liberalismo como ideologia social, ao capitalismo como teoria
econmica e ao positivismo dogmtico como doutrina jurdica.
Esse "senso comum" reforado pela prtica
cotidiana de nossos Tribunais e dos operadores do direito. Ele
se nutre tambm da convico de que as normas constitucionais
j incorporaram os ideais sociais e que, fora da ordem legal e
da rbita judicial, no se faz direito, nem se obtm justia.
Isto um equvoco. Chamo dois apoios doutrinrios para esta
reflexo.
Fbio Comparato aponta como uma das caractersticas dos
direitos fundamentais a inexigibilidade de sua positivao no
texto constitucional. A evoluo histrica dos direitos do
homem foi determinando sucessivos patamares de conscincia que
tornam tais direitos exigveis. Inicialmente tal conscincia
formou-se em torno da palavra LIBERDADE; depois da idia de
IGUALDADE; em seguida e por fim, do conceito de SOLIDARIEDADE.
Em funo disso, hoje quando dizemos direito vida, queremos
dizer VIDA LIVRE, DIGNA E SOLIDRIA. Isto mera teoria? No.
Esta noo de direitos humanos
cristaliza-se na conscincia dos homens e sua aplicao poder
ser cobrada, sem referncia a um texto legal. Confira-se o
artigo 5 da C.F. que afirma estarem assegurados aos
brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil a
inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade,
segurana e propriedade. Ningum sustentar que ao
estrangeiro turista, no includo
formalmente naquela proteo, possa ser subtrado impunemente
qualquer direito.
E Dalmo Dallari, chamando ateno para o fenmeno da perverso
da retrica dos D.H., mais uma vez, j alertou que o princpio
da igualdade, colhendo situaes extremamente desiguais do
ponto de vista cultural, econmico e social, pode ser
instrumento de conservao de situaes de opresso.
J tive oportunidade de dizer, em Conferncia Nacional dos
Advogados Brasileiros, que a correta perspectiva da defesa e
promoo dos direitos humanos, nos prximos anos, depender
do entendimento da soluo de tal equao.
Hoje o Brasil concentra 44% dos pobres da Amrica Latina. Em
relao aos nveis de distribuio de renda entre todas as
reas do mundo, o Brasil foi o pior do que a mdia regional da
AL. um dos pases com mais alto nvel de mortalidade
infantil e analfabetismo no subcontinente, ao lado da Bolvia e
da Guatemala. Da populao brasileira, 49,9% pobre (leia-se
miservel, j que tm renda de menos de US$ 60 por ms),
cifra maior que a calculada em 1980. o que revela o estudo
"Pobreza e Distribuio de Renda na A.L.", realizado
por tcnicos do BANCO MUNDIAL (BIRD) (cf. Folha de S. Paulo,
8.3.93). O Brasil, com tais nmeros, o pas mais injusto da
AL. Com tal realidade, convive uma ordem jurdica teoricamente
insuscetvel de crtica. A longa enumerao dos direitos
individuais e coletivos feitas pela Carta de 1988, sua insero
logo no portal do novo texto constitucional, a previso de
novas garantias (mandado de injuno, habeas data, mandado de
segurana
coletivo), a contemplao de algumas formas de participao
popular direta, so prprias de qualquer pas democrtico de
verdade.
a exatamente que se deve atentar para a possibilidade de
perverso do princpio de isonomia e dos demais princpios
constitucionais. Tratar igualmente situaes absolutamente
desiguais, ou pessoas com capacidades econmicas completamente
distintas, pode ser cumprimento literal da lei, mas igualmente
realizao de injustia. Dar direito a voto, mas negar
mecanismos efetivos de veicular a democracia participativa
representa algum avano? Assegurar liberdade de expresso, mas
negar direito vida (meninos de rua, Carandir, Candelria,
Vigrio Geral, esquadres de morte, acidentes de trabalho em nvel
assustador) democracia? As vrias geraes de direitos
humanos (na realidade patamares de conscincia da evoluo do
conceito de direitos humanos) ressaltaram atributos vinculados
s idias bsicas de LIBERDADE (primeira gerao - direitos
civis e polticos), IGUALDADE (segunda gerao - direitos
econmicos, sociais e culturais) e SOLIDARIEDADE (terceira gerao
- direito vinculados convivncia dos povos, ao meio
ambiente, ao desenvolvimento, paz, em ltima instncia).
Mas, de qualquer forma tais geraes s acrescentam atributos
ao conceito de VIDA. Hoje, vida quer dizer VIDA LIVRE, DIGNA E
SOLIDRIA.
A colaborao do cidado-jurista, neste ponto, estabelecer
e aplicar critrios para reconhecer um direito como humano
fundamental, sem prejuzo da possibilidade de estabelecimento
de mecanismos (no necessariamente judiciais) para faz-lo
vigente.
Os direitos humanos sero aqueles essenciais, sem os quais no
se reconhece o conceito estabelecido de vida. No h uma relao
estabelecida e final de tais direitos, j que seu carter
progressivo, correspondendo a cada momento ao estgio cultural
da civilizao, como se v das sucessivas "geraes".
O direito a uma vida livre e digna de uns deve ser efetivado sem
impedir tal direito a outros. Os direitos humanos fundamentais so
universais. Nem s dos brancos, nem s dos ricos. Isto pode
implicar em afetar profundamente o poder dos ricos e
privilegiados, sempre que tal riqueza ou privilgio seja o
impedimento a uma vida decente de outras pessoas. Isto pode
significar a necessidade de promover a distino a que se
refere Fbio Comparato, entre propriedade-fuio e
propriedade-poder (in "Para Viver a Democracia",
p.46).
Os direitos humanos independem de positividade. Seu
reconhecimento pode ser colocado mesmo revelia das leis da
Constituio. Confira-se, para exemplo, o caput do artigo 5
de nossa Carta.
Tm, outrossim, carter internacional. Em outras palavras, a
preocupao com a vigncia dos direitos humanos universal
e o seu descumprimento em alguma parte atinge mesmo aqueles que
ali no vivem e no esto submetidos mesma autoridade.
Isto pode implicar, por exemplo, no estabelecimento de jurisdio
universal para crimes como a tortura, o desaparecimento e os
assassinatos polticos, o reconhecimento da licitude do
questionamento de vrias ONGs sobre o procedimento interno de
pases que violam sistemtica e massivamente direitos humanos.
Este procedimento tem apoio nos artigo 1, III e seu pargrafo
nico e artigo 3, I, III e IV da Constituio Federal, que
colocam como fundamento do Estado democrtico a dignidade da
pessoa humana e a origem popular do poder, e como objetivos da
Repblica, a construo de uma sociedade livre, justa e solidria,
a promoo do bem comum, sem preconceitos e a erradicao da
pobreza e da marginalizao. H igualmente fundamento para
tal proceder em inmeros instrumentos internacionais. Cito
apenas, por ser menos conhecida, a Resoluo 32/130 da ONU,
tomada pela Assemblia Geral, em 1977. Ali se estabelece o que
se deve ter em conta ao se falar em direitos humanos: - os
direitos humanos e as liberdades fundamentais constituem um todo
nico indivisvel; - impossvel a realizao dos
direitos civis polticos sem o usufruto dos direitos econmicos
sociais e culturais; - os direitos e liberdades fundamentais da
pessoa humana e dos povos so inalienveis; - os problemas
afetos aos direitos humanos devem ser tratados globalmente; - no
marco da sociedade internacional, deve ser dada prioridade
absoluta para a busca de solues a violaes massivas e
flagrantes de direitos dos povos e pessoas vtimas de situaes
que lesam sua dignidade; - essencial para a consolidao
dos direitos e liberdades fundamentais, a ratificao pelos
Estados dos instrumentos internacionais a respeito do tema.
A conduta de quem proceder com o critrio ideal do cidado
jurista, privilegiando os direitos e liberdades fundamentais, a
partir do conceito de vida livre, digna e solidria, pode ser
revolucionria, mas certamente no ser injurdica.
Assim, o Direito no s se ope como ampara a chamada
"opo preferencial pelos pobres" ou a necessidade
imperiosa do enfrentamento do que Betinho chama de "agenda
da fome".
Chamem como quiser tal conduta: novo direito, direito
insurgente, direito alternativo, ou simplesmente interpretao
social e sistemtica do direito. De qualquer forma ela dever
respaldar a adoo de uma tica a partir dos "excludos".
"No momento em que desejamos transformar uma realidade
necessrio que o "excludo", o que est margem,
vivenciando seu vazio, nos possa mostrar melhor as contradies
e question-las... ... Tal opo chama responsabilidade da
ao concreta, o grande desafio que nos colocado."
Como homem do direito, e antes como cidado, tento refletir a
grande inquietude que se coloca no tema posto mesa.
No tem mais sentido pensar em normas pragmticas, ou apenas
consagrar juridicamente a utopia, e desconhecer o anseio atual
do homem da rua, a fome atual daquela "no pessoa" to
hostilizada pelo dia a dia. O direito tem de ser posto a servio
do homem, hoje.
Em termos de postura poltica, ou jurdica, judicial ou
extra-judicial, a tica do advogado dever ser o direito,
aplicar o direito, aqui, agora, e portanto, a partir da tica
dos direitos humanos fundamentais. O direito servir como um
instrumento para garantir a vida livre, digna e solidria.
Mas, fundamental reconhecer que a transformao que se quer
no a primeiro pelo jurdico, nem necessariamente pelo
legal. De novas leis estamos cheios. preciso antes mudar a
cabea de quem as cria, mas principalmente de quem as
interpreta e aplica. E a do eleitor. E a do jurista. E a do
cidado.
Essa nova dimenso da solidariedade, assim, antes que
alternativa jurdica, se impe como uma nova opo tico-poltica
(cf. "Solidariedade como nova opo tico-poltica",
de Augusto de Franco, in Boletim do INESC, outubro de 1993).
uma luta contra o individualismo, contra o
"jeitinho", contra a "lei de Gerson". uma
luta que no perde de vista a utopia, mas inicia no presente
uma ao transformadora. um processo educativo individual e
coletivo.
Lembrando Theodore Roszak, Augusto de Franco, no trabalho
citado, diz estar de volta cena a idia de transformar o
sentido da realidade das pessoas, uma a uma, para transformar a
realidade.
Dentro dessa tica, de respeitar os direitos, mas adotar
conduta que represente avano na outorga de espao poltico
cidadania que esto sendo adotados em So Paulo alguns
mecanismos:
Frum da Cidadania
Centros Integrados da Cidadania
Ouvidoria
Cdigo de Defesa do Consumidor de Servios Pblicos
Extenso do Programa de Defesa do Consumidor
Educao em Direitos Humanos
Projeto Justia/Segurana - ano 2020
Diz o querido Betinho:
- Todos somos responsveis por tudo;
- preciso pensar globalmente, mas agir localmente;
- S se pode propagar uma idia (tico-poltica) vivendo de
acordo com ela;
- O processo tambm o objetivo;
- Os meios devem ser to dignos quanto os fins;
- O que no for feito aqui-e-agora no cria outro estado no
mundo.
Concluindo estas desalinhavadas reflexes, entendo que a luta
contra a fome exige do jurista um repensar de sua conduta at
mesmo como cidado, como pessoa. A busca da democracia uma
viagem, onde vale mais o caminho que a chegada. O porto talvez no
seja mais importante como o navegante e o navegar.
Creio ter aprendido, no grande teatro da vida, que, nessa luta e
nessa busca, a justia, a alegria e a solidariedade, no so
objetivos a atingir, mas imprescindveis companheiras de
viagem.
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