283sq
Um
olhar sobre os olhares
Roberto
Aguiar
A
linearidade e o geometrismo presidem a herana que recebemos
da cincia do sculo XIX. Nossas percepes procuram
regularidades, tendncias, leis, permanncias, ordens estveis
e harmonias escondidas na fragmentao cotidiana e nas
rupturas e contradies do mundo em que vivemos. H at
mesmo o risco dos pensadores dialticos, que tem de
fundamentar suas reflexes e prticas no movimento, na
instabilidade e na ruptura, de se tornarem arautos de uma
harmonia e estabilidade futura, padro e norte para a
compreeenso e interveno no presente. Sem que eles
queiram, am a assumir o combatido positivismo que
rejeitam.
Essa cincia taxonmica e de semelhanas gerou um
olhar analtico sobre recortes que foi desenvovelndo diante
do mundo do dado. Tais recortes foram denominados objetos. A
constituio dos objetos possibilitou grande repercusso
operatria, que se traduziu pelo avano da tecnologia e
aumento evidente do rigor no tratamento terico dos objetos
construidos. O problema que esse olhar trouxe foi o de no
mais perceber a totalidade do dado. Os recortes estavam bem
analisados, as repercusses prticas estavam sob controle e
serviam produo, mas estava instaurada a impossibilidade
de se construir a globalidade do dado que foi recortado para
constituir o objeto de determinada cincia.
O
efeito dessa viso foi devastador para o pensar humano e para
a prpria ao humana no mundo. Quando o pensamento
pretendia elaborar percepes globalizantes, necessitava
lastrear-se em determinada cincia, que hipertrofiava um
recorte do mundo do dado. Logo, corria o risco de ler o mundo
sob uma ptica parcial, ou tornar o parcial como manifestao
da totalidade. Ora a economia era o cho a partir do qual a
cosmogonia se constituia, ora
a psicologia lastreava essa construo, ora a poltica
e assim por diante. Desse modo, no lugar de se abarcar a
complexidade da tessitura do dado, fazia-se uma leitura
generalizadora a partir de um objeto metodologicamente
reduzido. As repercusses prticas tambm foram nefastas,
pois a conduta humana ou a ser compartimentada, mesmo
quando pretendia ser um agir transformador.
Ligando-se
a busca das regularidades e a linearidade do pensamento com o
reducionismo necessrio para a constituio das cincias,
o movimento, os acontecimentos, as irregularidades, as diferenas,
a criatividade, os imaginrios, por no se enquadrarem em
categorias fixas e predeterminadas, no respondiam ao modo
geomtrico e regular que respaldava esse olhar.
Poderamos
dizer que o olhar cientfico do sculo ado no dava
conta da aventura humana. Uma anlise da palavra aventura
poder introduzir sua multiplicidade de sentidos, que
transcende, em muito, seu uso corriqueiro. Esta palavra advem
do latim venturus,
particpio futuro do verbo venio,
que significa vir, avanar, atacar, crescer, brotar, caber em
sortes ou cair em sorte, ar, sofrer, caminhar
vagarosamente, mostrar-se, vir ao mundo, dentre outros
sentidos. Como adjetivo, tem o significado de futuro que vir.
Enquanto substantivo feminino, est ligada ao latim ventura,
que tem o sentido de fado, destino, sorte e fortuna. A composio
do prefixo ad com
o substantivo ventura
gerou no latim a palavra adventura,
que tem mais uma existncia hipottica nos dicionrios
etimolgicos, do que documentada nos textos dessa lngua,
que significa coisas que esto por vir. Em portugus, abarca
os sentidos de empresa, empreendimento, experincia
arriscada, perigosa ou incomum, cujo fim ou decorrncias so
incertas, acontecimento imprevisto ou surpreendente, acaso,
sorte e fortuna, conforme as lies do Dicionrio Aurlio.
A
significao de aventura tem como base os sentidos de
inesperado, de ao, de possibilidade e de acaso. Subjacente
a esta palavra, tambm percebemos a imbricao do sentido
de futuro, de construo, de risco para construir um itinerrio.
A palavra aventura a negao da linearidade, mas a
afirmao do movimento, do enfrentamento, do mergulho no
desvendamento do desconhecido da busca do melhor, do
plenificador. Da a expresso bem aventurado, isto ,
aquele que, por sua ao, conduta ou natureza, aquinhoado
com a boa sorte, com a salvao e com a diferenciao
dignificante. A aventura tambm
uma forma de nascimento, de vir luz, de
enfrentamento interior e exterior, de modificao, se
tomarmos sua origem verbal latina. A aventura no cabe em
previses lineares, nem pode ser circunscrita por modelos
esquemticos ou prefiguradores. Ela no adeqa nos
universos previsveis, no se acomoda aos conceitos prontos,
nem pode lanar suas bases em certezas acomodadoras. A
aventura a negao do posto, do conservador e do seguro.
Ela risco, imprevisibilidade e salto para o desconhecido.
Ela atitude de desvendamento, busca de luz ao final de um tnel,
que leva a outros tneis,
desafio
constante, questionamento permanente, surpresa a cada o e
crescimento a partir das experincias que proporciona. A
aventura traduz avano, crescimento e construo de
destinos, a se tomar sua raiz latina.
Contemporaneamente,
os novos modelos cientficos que procuram dar conta da
diferena, introduziram na reflexo esse problema, que, em
termos fenomnicos recebe o nome de acontecimento, de fato ou
ser nico. Em nvel da condio humana, esse fenmeno
pode ser denominado aventura. A caracterstica central da
trajetria humana a aventura, pois o desconhecido permeia
a existncia da prpria humanidade e o desvendamento do
mundo uma aventura intelectual, afetiva, existencial e
operatria. Essas aventuras so coletivas e pessoais e, em
funo da prpria conscincia crescente do ser humano,
engendram problemas crescentes, a cada superao de
problemas anteriores.
Existir
uma aposta coletiva e individual,
que tem o risco de todas as situaes
aleatrias, onde variveis imprevisveis testam e desafiam
a aposta feita. As apostas existenciais tem um componente
essencialmente tico. Alm do ser humano ser de uma espcie
que tem a peculiaridade de rir, como entende certa escola
italiana, essa espcie tem a especificidade da construo
social da tica. As bases de suas condutas participam de um
complexo de facetas, que vai do hereditrio ao social, do
social para o animal, do animal para o orgnico e do orgnico
para o mineral, isso sem tratar das questes histricas e
culturais e sem considerar as contradies econmicas,
produtivas, grupais e interiores pelas quais suas existncias
am.
Para
enfrentar essa teia, o olhar da cincia positivista mope,
havendo necessidade de se conceber uma cartografia
transdisciplinar para dar conta desse ser que tem vrias
entradas para sua leitura e vrios lados para serem olhados.
O olhar parcial perde a totalidade do cone. Ele tem de ser
visto com lentes de aumento para detectar suas dimenses
pequenas, com telescpios para desvendar suas
macro-realidades e com os olhos do artista para captar sua gestalt.
Mas no basta olh-lo, no basta aguar os procedimentos tcnicos
ou metodolgicos, preciso perceb-lo com os sentidos da
paixo, com os instrumentos do afeto, que tambm so
ferramentas desvendadoras do processo de construo desse
ser.
A
aventura humana no cabe em modelos restritivos, o que
significa dizer que a linearidade, as utopias curtas, as vises
redutoras no podem desvelar esse caminho mutvel e
contraditrio da aventura peculiar que vai constituindo seus
objetivos, na medida em que caminha. O futuro, outro aspecto
da aventura, construido pelos seres humanos, mas tambm
desviado e redirecionado pelos fenmenos que independem de
sua ao, j que, apesar de no gostar disso, o ser humano
vai abandonando seu sentimento de onipotncia, transitando da
posio de imagem e semelhana de Deus, para a de habitante
de um cosmos pouco
conhecido e que exige seu desvendamento para definir a prpria
condio humana e subsidiar sua trajetria enquanto seres
individuais e coletivos.
A
lgica e a matemtica que se apresentavam como instrumental
validador do contexto de descoberta das cincias, se insurgem
contra essa posio e am a ser instrumentos de abertura
fenomenolgica, de kerigma
das descobertas cientficas. Essas linguagens, que eram fator
de certezas, transmudam-se em instrumentos de uma incerteza
criativa, que tem servido para transpor dicotomias
anteriormente excludentes, como no caso da luz, que
considerada corpo e onda, ou como no caso da astrofsica, que
considera o universo finito, mas ilimitado, alm da
descontinuidade trazida pelo fenmeno dos quanta.
A
histria do ser humano transcende o que foi imaginado a
respeito dele.
Sua existncia potencial j estava inscrita nos minerais e j
era provvel, quando a primeira clula recebeu a classificao
de organismo monocelular. Ele pertence a uma histria que no
se restringe ao tempo de durao de sua espcie, mas lana
suas razes nos tempos csmicos, geolgicos e biolgicos.
No a Terra seu nico habitat, mas o universo seu oikos.
A
ascenso do relativismo, outra das caractersticas da cincia
do sculo XIX, contrape anti-dogmas aos dogmas daquilo que
era considerado metafsico. O relativismo no a negao
dos dogmas, a afirmao de novos. O ser humano, em sua
aventura, no pode ser abordado em separado do cosmos do qual
veio, habita e tira seu sustento. Nem, o cosmos pode ser
desvendado sem a participao do ser humano. O que sabemos
dele, saber humano sobre ele. O Cosmos um construto da
inteligncia humana, alis, da inteligncia da Grcia clssica.
Foi a partir das sucessivas rupturas j analisadas que o ser
humano baixou seu olhar para a imediatidade que o cerca, ou s
suas existncias encaradas como enclausuradas e solitrias,
ou ainda, histria dos vencedores, mas pobres vencedores,
que so ontologicamente encarados como uma excrescncia da
crosta de um planeta secundrio de uma estrela decadente.
Urge,
nessa aventura humana, restaurar esse dilogo maior e
resgatar a dignidade, do mbito mineral ao animal, desse ser,
que em lugar de exil-lo da totalidade csmica, o faz partcipe
do universo, a partir da configurao dinmica de sua prpria
carne, de suas prprias clulas, alm de lhe conferir um
papel essencial na aventura csmica: a de ser a conscincia
em construo, o criador de valores na contemporaneidade.
Ele o tempo presente.
Por
isso podemos dizer que o homem um ser universal, um ente
para alm das fronteiras, das idiossincrasias e com mltiplas
pertinncias, que no se restringem a contextos que se
exaurem no tempo ou nos olhares ortodoxos da razo
intrumental, que manieta a aproximao desse complexo fenmeno.
Segundo essa tendncia, todo conhecimento humano relativo,
assim como os valores variam segundo o tempo, culturas,
sociedades e circunstncias, no tendo qualquer sentido
substancial.
A
viso do relativismo pretende negar o absoluto, isto ,"aquilo
que tanto no pensamento como na realidade no depende de
nenhuma outra coisa e traz em si mesmo a sua razo de
ser" no entender de Franck, ou o no coordenado, o que
est fora de toda a relao, como queria J.J. Gourd em sua
Filosofia da Religio. Na teoria do conhecimento pode ser
considerado como a coisa em si, o ser tal como existe em si
mesmo, independentemente da representao que dele possamos
ter, conforme Liard. A possibilidade humana, para os
relativistas, restringe-se ao fenomnico, nunca podendo
atingir a coisa em si, o absoluto, o perfeito, o acabado, vale
dizer, ao noumenon.
Spencer
e os positivistas vo estabelecer os
dogmas do relativismo, que j tinham sido expostos
anteriormente pelos empiristas e criticistas, como lembra
Abbagnano. Eles eram a relatividade do conhecimento humano e a
incognoscibilidade do Absoluto. O conhecimento se dava a
partir dos fenmenos e suas relaes e destes com o sujeito
cognoscente. No havia uma verdade absoluta, nem mesmo uma
verdade racional, j que a essncia das coisas, se
existisse, no poderia ser tocada pela inteligncia humana.
As verdades seriam relativas. Spengler, em sua Decadncia do
Ocidente, levou mxima radicalizao o relativismo,
quando afirmou: "cada cultura tem seu prprio critrio,
cuja validade comea e termina com ele. No existe qualquer
moral humana universal".
O
Relativismo e, em especial sua manifestao positivista,
exilou o ser humano do mundo do dado que o cerca. Sujeito
cognoscente e objeto conhecido tem uma relao intelectual
onde os dois polos esto bem delimitados e se relacionam
perifericamente. Nunca o ser humano poder chegar essncia
das coisas, isto , sua prpria essncia.
Epistemologicamente o ser humano, com o relativismo,
apartou-se do fenmeno, para ser um observador de fora, ou um
interventor operatrio externo. O relativismo tambm
propiciou clivagens teis para a produo, mas deletrias
para o pensar e o agir ticos. preciso lembrar que o
relativismo no uma corrente ou uma escola, ele um
substrato, um modo de olhar, um subsolo que permeia vrias
manifestaces filosficas,
cientficas e artsticas. No pode ser considerado
como uma corrente por permear vrias posies
perifericamente contraditrias, nem uma ideologia, por
fundamentar tanto pensamentos e prticas transformadoras,
quanto reacionrias. No existe um pensador relativista, mas
centenas com fundamentos e subsolos relativistas.
O
Positivismo e, em especial, o neo-positivismo lgico
trouxeram uma contribuio paradoxal para o pensamento
humano. De um lado propiciaram maior rigor para o mundo da
teoria e das tcnicas, mas de outro, com a hipertrofia do
mito da neutralidade introduziram a no valorao como
caminho para a verdade. Tal verdade no se confunde com o
sentido religioso, nem mesmo faz referncia ao sentido
testemunhal: nem a emunah
hebraica, nem a veritas
latina esto no horizonte da verdade positivista. A verdade
positivista uma radicalizao da altheia
grega: a verdade racional, a verdade demonstrada, a verdade
experimentalmente comprovada. Para eles, a verdade no est
nos fenmenos, mas naquilo que dizemos sobre os fenmenos,
vale dizer que ela
atributo de sentena.
Foi
esse aspecto de neutralidade que possibilitou a clivagem entre
a produo de cincia e a tica, aspecto essencial para o
aumento da eficincia dos cientistas, que alienaram suas
questes ticas para os governantes e os polticos que
iriam aplicar de forma melhor ou pior o que havia sido
descoberto nas pesquisas. Para o produtor de conhecimento,
bastava a verdade racional que significava a adequao
racional de suas linguagens ao fenmeno que estava sendo
estudado. Para os neo-positivistas, a busca dessa verdade
importava em uma duplicidade de contextos: o contexto de
descoberta, domnio das tcnicas cada vez mais adequadas
para dar conta dos fenmenos e o contexto de validao, domnio
da lgica e da matemtica, linguagens dedutivas
sofisticadas, que tem como escopo validar o que descoberto.
No entender dessa corrente de pensamento, o mtodo que valida
a descoberta um s: o hipottico-dedutivo. a partir
desse olhar que o mundo dos fenmenos encarado como eterno
e a espera do aperfeioamento das armadilhas tcnicas e lgicas
para poder explic-los. No h lugar para valores (que so
ideolgicos, ou campo do dever-ser da moral) e no existe
espao para o acontecimento, para o singular, para o pontual,
para o que brilha como uma centelha, para nunca mais retornar.
So
essas mesmas tendncias que vo reintroduzir a viso de um
mundo harmnico, onde a contradio e os conflitos so
exceo. Procura-se a regularidade, as semelhanas, o rigor
do objeto, tendo como recorte o imaginrio segundo o qual s
o experimentvel, o dedutvel, o validvel podem ser objeto
do conhecimento verdadeiro. Tudo mais sentimento,
perfumaria, folclore, primitivismo ou metafsica. Chegou-se
assim assepcia total.
|