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Um olhar sobre os olhares


Roberto Aguiar

A linearidade e o geometrismo presidem a herana que recebemos da cincia do sculo XIX. Nossas percepes procuram regularidades, tendncias, leis, permanncias, ordens estveis e harmonias escondidas na fragmentao cotidiana e nas rupturas e contradies do mundo em que vivemos. H at mesmo o risco dos pensadores dialticos, que tem de fundamentar suas reflexes e prticas no movimento, na instabilidade e na ruptura, de se tornarem arautos de uma harmonia e estabilidade futura, padro e norte para a compreeenso e interveno no presente. Sem que eles queiram, am a assumir o combatido positivismo que rejeitam.

Essa cincia taxonmica e de semelhanas gerou um olhar analtico sobre recortes que foi desenvovelndo diante do mundo do dado. Tais recortes foram denominados objetos. A constituio dos objetos possibilitou grande repercusso operatria, que se traduziu pelo avano da tecnologia e aumento evidente do rigor no tratamento terico dos objetos construidos. O problema que esse olhar trouxe foi o de no mais perceber a totalidade do dado. Os recortes estavam bem analisados, as repercusses prticas estavam sob controle e serviam produo, mas estava instaurada a impossibilidade de se construir a globalidade do dado que foi recortado para constituir o objeto de determinada cincia.

O efeito dessa viso foi devastador para o pensar humano e para a prpria ao humana no mundo. Quando o pensamento pretendia elaborar percepes globalizantes, necessitava lastrear-se em determinada cincia, que hipertrofiava um recorte do mundo do dado. Logo, corria o risco de ler o mundo sob uma ptica parcial, ou tornar o parcial como manifestao da totalidade. Ora a economia era o cho a partir do qual a cosmogonia se constituia, ora a psicologia lastreava essa construo, ora a poltica e assim por diante. Desse modo, no lugar de se abarcar a complexidade da tessitura do dado, fazia-se uma leitura generalizadora a partir de um objeto metodologicamente reduzido. As repercusses prticas tambm foram nefastas, pois a conduta humana ou a ser compartimentada, mesmo quando pretendia ser um agir transformador.

Ligando-se a busca das regularidades e a linearidade do pensamento com o reducionismo necessrio para a constituio das cincias, o movimento, os acontecimentos, as irregularidades, as diferenas, a criatividade, os imaginrios, por no se enquadrarem em categorias fixas e predeterminadas, no respondiam ao modo geomtrico e regular que respaldava esse olhar.

Poderamos dizer que o olhar cientfico do sculo ado no dava conta da aventura humana. Uma anlise da palavra aventura poder introduzir sua multiplicidade de sentidos, que transcende, em muito, seu uso corriqueiro. Esta palavra advem do latim venturus, particpio futuro do verbo venio, que significa vir, avanar, atacar, crescer, brotar, caber em sortes ou cair em sorte, ar, sofrer, caminhar vagarosamente, mostrar-se, vir ao mundo, dentre outros sentidos. Como adjetivo, tem o significado de futuro que vir. Enquanto substantivo feminino, est ligada ao latim ventura, que tem o sentido de fado, destino, sorte e fortuna. A composio do prefixo ad com o substantivo ventura gerou no latim a palavra adventura, que tem mais uma existncia hipottica nos dicionrios etimolgicos, do que documentada nos textos dessa lngua, que significa coisas que esto por vir. Em portugus, abarca os sentidos de empresa, empreendimento, experincia arriscada, perigosa ou incomum, cujo fim ou decorrncias so incertas, acontecimento imprevisto ou surpreendente, acaso, sorte e fortuna, conforme as lies do Dicionrio Aurlio.

A significao de aventura tem como base os sentidos de inesperado, de ao, de possibilidade e de acaso. Subjacente a esta palavra, tambm percebemos a imbricao do sentido de futuro, de construo, de risco para construir um itinerrio. A palavra aventura a negao da linearidade, mas a afirmao do movimento, do enfrentamento, do mergulho no desvendamento do desconhecido da busca do melhor, do plenificador. Da a expresso bem aventurado, isto , aquele que, por sua ao, conduta ou natureza, aquinhoado com a boa sorte, com a salvao e com a diferenciao dignificante. A aventura tambm uma forma de nascimento, de vir luz, de enfrentamento interior e exterior, de modificao, se tomarmos sua origem verbal latina. A aventura no cabe em previses lineares, nem pode ser circunscrita por modelos esquemticos ou prefiguradores. Ela no adeqa nos universos previsveis, no se acomoda aos conceitos prontos, nem pode lanar suas bases em certezas acomodadoras. A aventura a negao do posto, do conservador e do seguro. Ela risco, imprevisibilidade e salto para o desconhecido. Ela atitude de desvendamento, busca de luz ao final de um tnel, que leva a outros tneis,

desafio constante, questionamento permanente, surpresa a cada o e crescimento a partir das experincias que proporciona. A aventura traduz avano, crescimento e construo de destinos, a se tomar sua raiz latina.

Contemporaneamente, os novos modelos cientficos que procuram dar conta da diferena, introduziram na reflexo esse problema, que, em termos fenomnicos recebe o nome de acontecimento, de fato ou ser nico. Em nvel da condio humana, esse fenmeno pode ser denominado aventura. A caracterstica central da trajetria humana a aventura, pois o desconhecido permeia a existncia da prpria humanidade e o desvendamento do mundo uma aventura intelectual, afetiva, existencial e operatria. Essas aventuras so coletivas e pessoais e, em funo da prpria conscincia crescente do ser humano, engendram problemas crescentes, a cada superao de problemas anteriores.

Existir uma aposta coletiva e individual, que tem o risco de todas as situaes aleatrias, onde variveis imprevisveis testam e desafiam a aposta feita. As apostas existenciais tem um componente essencialmente tico. Alm do ser humano ser de uma espcie que tem a peculiaridade de rir, como entende certa escola italiana, essa espcie tem a especificidade da construo social da tica. As bases de suas condutas participam de um complexo de facetas, que vai do hereditrio ao social, do social para o animal, do animal para o orgnico e do orgnico para o mineral, isso sem tratar das questes histricas e culturais e sem considerar as contradies econmicas, produtivas, grupais e interiores pelas quais suas existncias am.

Para enfrentar essa teia, o olhar da cincia positivista mope, havendo necessidade de se conceber uma cartografia transdisciplinar para dar conta desse ser que tem vrias entradas para sua leitura e vrios lados para serem olhados. O olhar parcial perde a totalidade do cone. Ele tem de ser visto com lentes de aumento para detectar suas dimenses pequenas, com telescpios para desvendar suas macro-realidades e com os olhos do artista para captar sua gestalt. Mas no basta olh-lo, no basta aguar os procedimentos tcnicos ou metodolgicos, preciso perceb-lo com os sentidos da paixo, com os instrumentos do afeto, que tambm so ferramentas desvendadoras do processo de construo desse ser.

A aventura humana no cabe em modelos restritivos, o que significa dizer que a linearidade, as utopias curtas, as vises redutoras no podem desvelar esse caminho mutvel e contraditrio da aventura peculiar que vai constituindo seus objetivos, na medida em que caminha. O futuro, outro aspecto da aventura, construido pelos seres humanos, mas tambm desviado e redirecionado pelos fenmenos que independem de sua ao, j que, apesar de no gostar disso, o ser humano vai abandonando seu sentimento de onipotncia, transitando da posio de imagem e semelhana de Deus, para a de habitante de um cosmos pouco conhecido e que exige seu desvendamento para definir a prpria condio humana e subsidiar sua trajetria enquanto seres individuais e coletivos.

A lgica e a matemtica que se apresentavam como instrumental validador do contexto de descoberta das cincias, se insurgem contra essa posio e am a ser instrumentos de abertura fenomenolgica, de kerigma das descobertas cientficas. Essas linguagens, que eram fator de certezas, transmudam-se em instrumentos de uma incerteza criativa, que tem servido para transpor dicotomias anteriormente excludentes, como no caso da luz, que considerada corpo e onda, ou como no caso da astrofsica, que considera o universo finito, mas ilimitado, alm da descontinuidade trazida pelo fenmeno dos quanta.

A histria do ser humano transcende o que foi imaginado a respeito dele. Sua existncia potencial j estava inscrita nos minerais e j era provvel, quando a primeira clula recebeu a classificao de organismo monocelular. Ele pertence a uma histria que no se restringe ao tempo de durao de sua espcie, mas lana suas razes nos tempos csmicos, geolgicos e biolgicos. No a Terra seu nico habitat, mas o universo seu oikos.

A ascenso do relativismo, outra das caractersticas da cincia do sculo XIX, contrape anti-dogmas aos dogmas daquilo que era considerado metafsico. O relativismo no a negao dos dogmas, a afirmao de novos. O ser humano, em sua aventura, no pode ser abordado em separado do cosmos do qual veio, habita e tira seu sustento. Nem, o cosmos pode ser desvendado sem a participao do ser humano. O que sabemos dele, saber humano sobre ele. O Cosmos um construto da inteligncia humana, alis, da inteligncia da Grcia clssica. Foi a partir das sucessivas rupturas j analisadas que o ser humano baixou seu olhar para a imediatidade que o cerca, ou s suas existncias encaradas como enclausuradas e solitrias, ou ainda, histria dos vencedores, mas pobres vencedores, que so ontologicamente encarados como uma excrescncia da crosta de um planeta secundrio de uma estrela decadente.

Urge, nessa aventura humana, restaurar esse dilogo maior e resgatar a dignidade, do mbito mineral ao animal, desse ser, que em lugar de exil-lo da totalidade csmica, o faz partcipe do universo, a partir da configurao dinmica de sua prpria carne, de suas prprias clulas, alm de lhe conferir um papel essencial na aventura csmica: a de ser a conscincia em construo, o criador de valores na contemporaneidade. Ele o tempo presente.

Por isso podemos dizer que o homem um ser universal, um ente para alm das fronteiras, das idiossincrasias e com mltiplas pertinncias, que no se restringem a contextos que se exaurem no tempo ou nos olhares ortodoxos da razo intrumental, que manieta a aproximao desse complexo fenmeno. Segundo essa tendncia, todo conhecimento humano relativo, assim como os valores variam segundo o tempo, culturas, sociedades e circunstncias, no tendo qualquer sentido substancial.

A viso do relativismo pretende negar o absoluto, isto ,"aquilo que tanto no pensamento como na realidade no depende de nenhuma outra coisa e traz em si mesmo a sua razo de ser" no entender de Franck, ou o no coordenado, o que est fora de toda a relao, como queria J.J. Gourd em sua Filosofia da Religio. Na teoria do conhecimento pode ser considerado como a coisa em si, o ser tal como existe em si mesmo, independentemente da representao que dele possamos ter, conforme Liard. A possibilidade humana, para os relativistas, restringe-se ao fenomnico, nunca podendo atingir a coisa em si, o absoluto, o perfeito, o acabado, vale dizer, ao noumenon.

Spencer e os positivistas vo estabelecer os dogmas do relativismo, que j tinham sido expostos anteriormente pelos empiristas e criticistas, como lembra Abbagnano. Eles eram a relatividade do conhecimento humano e a incognoscibilidade do Absoluto. O conhecimento se dava a partir dos fenmenos e suas relaes e destes com o sujeito cognoscente. No havia uma verdade absoluta, nem mesmo uma verdade racional, j que a essncia das coisas, se existisse, no poderia ser tocada pela inteligncia humana. As verdades seriam relativas. Spengler, em sua Decadncia do Ocidente, levou mxima radicalizao o relativismo, quando afirmou: "cada cultura tem seu prprio critrio, cuja validade comea e termina com ele. No existe qualquer moral humana universal".

O Relativismo e, em especial sua manifestao positivista, exilou o ser humano do mundo do dado que o cerca. Sujeito cognoscente e objeto conhecido tem uma relao intelectual onde os dois polos esto bem delimitados e se relacionam perifericamente. Nunca o ser humano poder chegar essncia das coisas, isto , sua prpria essncia. Epistemologicamente o ser humano, com o relativismo, apartou-se do fenmeno, para ser um observador de fora, ou um interventor operatrio externo. O relativismo tambm propiciou clivagens teis para a produo, mas deletrias para o pensar e o agir ticos. preciso lembrar que o relativismo no uma corrente ou uma escola, ele um substrato, um modo de olhar, um subsolo que permeia vrias manifestaces filosficas, cientficas e artsticas. No pode ser considerado como uma corrente por permear vrias posies perifericamente contraditrias, nem uma ideologia, por fundamentar tanto pensamentos e prticas transformadoras, quanto reacionrias. No existe um pensador relativista, mas centenas com fundamentos e subsolos relativistas.

O Positivismo e, em especial, o neo-positivismo lgico trouxeram uma contribuio paradoxal para o pensamento humano. De um lado propiciaram maior rigor para o mundo da teoria e das tcnicas, mas de outro, com a hipertrofia do mito da neutralidade introduziram a no valorao como caminho para a verdade. Tal verdade no se confunde com o sentido religioso, nem mesmo faz referncia ao sentido testemunhal: nem a emunah hebraica, nem a veritas latina esto no horizonte da verdade positivista. A verdade positivista uma radicalizao da altheia grega: a verdade racional, a verdade demonstrada, a verdade experimentalmente comprovada. Para eles, a verdade no est nos fenmenos, mas naquilo que dizemos sobre os fenmenos, vale dizer que ela atributo de sentena.

Foi esse aspecto de neutralidade que possibilitou a clivagem entre a produo de cincia e a tica, aspecto essencial para o aumento da eficincia dos cientistas, que alienaram suas questes ticas para os governantes e os polticos que iriam aplicar de forma melhor ou pior o que havia sido descoberto nas pesquisas. Para o produtor de conhecimento, bastava a verdade racional que significava a adequao racional de suas linguagens ao fenmeno que estava sendo estudado. Para os neo-positivistas, a busca dessa verdade importava em uma duplicidade de contextos: o contexto de descoberta, domnio das tcnicas cada vez mais adequadas para dar conta dos fenmenos e o contexto de validao, domnio da lgica e da matemtica, linguagens dedutivas sofisticadas, que tem como escopo validar o que descoberto. No entender dessa corrente de pensamento, o mtodo que valida a descoberta um s: o hipottico-dedutivo. a partir desse olhar que o mundo dos fenmenos encarado como eterno e a espera do aperfeioamento das armadilhas tcnicas e lgicas para poder explic-los. No h lugar para valores (que so ideolgicos, ou campo do dever-ser da moral) e no existe espao para o acontecimento, para o singular, para o pontual, para o que brilha como uma centelha, para nunca mais retornar.

So essas mesmas tendncias que vo reintroduzir a viso de um mundo harmnico, onde a contradio e os conflitos so exceo. Procura-se a regularidade, as semelhanas, o rigor do objeto, tendo como recorte o imaginrio segundo o qual s o experimentvel, o dedutvel, o validvel podem ser objeto do conhecimento verdadeiro. Tudo mais sentimento, perfumaria, folclore, primitivismo ou metafsica. Chegou-se assim assepcia total.

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