CONFERNCIA
NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL
3i2g6h
Igreja
e problemas da terra
Documento
aprovado pela 18 Assemblia da CNBB Itaici, 14 de fevereiro
de 1980
INTRODUO
1.
A situao
dos que sofrem por questes de
terra em nosso pas extremamente grave. Ouvese por toda
parte o clamor desse povo sofrido, ameaado de perder sua terra
ou impossibilitado de alcan-Ia.
2.
Reunidos
na 18" Assemblia Geral, ns, Bispos da Igreja Catlica
no Brasil, decidimos dirigir uma palavra aos nossos irmos na F,
a todas as pessoas de boa vontade e responsabilidade, especialmente
aos trabalhadores rurais e aos povos indgenas, sobre o
problema da terra e dos que nela vivem e trabalham.
3.
Este
documento est voltado para a problemtica da posse da terra
em nosso pas. No um estudo sobre agricultura nem sobre a
questo tcnica da produo, mas sobre a questo social da
propriedade fundiria.
4.
Focalizamos
diretamente o problema da terra como se apresenta no meio rural.
A gravilade e a complexidade do problema no meio urbano,
que merecer oportunamente a nossa ateno, so aqui
examinadas
na sua relao com o problema do campo.
5.
Procuramos valorizar, preferencialmente, o ponto de
vista, o modo de pensar e a experincia concreta dos que sofrem
por causa cfo problema da terra. ,
6.
E
misso da Igreja convocar todos os homens apara que vivam .como
irmos superando toda forma
de explorao, como quer o nico Deus e
Pai
comum dos homens. Movidos pelo Evangelho e pela graa de Deus,
devemos no somente ouvir, mas assumir os sofrimentos e angstias,
as lutas e esperanas das vtimas da injusta distribuio e
posse da terra.
7.
Cientes
de que este problema nos chama prtica da justia e
fraternidade, esperamos que o nosso pronunciamento, acompanhado
de aes concretas, seja um motivo de nimo e de esperana
a todos os que, no campo, precisam da terra para o trabalho ou,
na cidade, para moradia. Fazemos igualmente uma advertncia
evanglica aos que querem "ajuntar casa a casa, campo a
campo, at que no haja mais lugar e que sejam nicos
proprietrios da terra", como j denunciava o profeta Isaas
(Is 5,8). Convidamos tambm a todas as pessoas de boa vontade a
que se unam e apoiem os nossos lavradores, no s para que
eles reconquistem a terra, mas para que possam trabalhar,
manter-se dignamente e produzir os alimentos de que todos
precisamos, e que se unam e apoiem os que vivem em condies
subumanas nas favelas e periferias das cidades.
I.
A REALIDADE DOS FATOS (')
1.
A terra de todos como terra de poucos
A
concentrao da propriedade da
terra no Brasil
8.
O Censo
Agropecurio de 1975 revelou que 52,3 dos estabelecimentos
rurais do pas tm menos de 10 ha. e ocupam to-somente a
escassa rea de 2,8i de toda a terra possuda. Em
contrapartida, 0,8% dos estabelecimentos tm mais de l.OOU
hectares e ocupam 42,6% da rea total. Mais da metade dos estbelecimentos
agropecurios ocupa menos de 3 da terra e menos de 1
dos estabelecimentos ocupa quase metade.
9.
Se
levarmos em conta que, provavelmente, muitos dos grandes
proprietrios tm o domnio de mais de uma propriedade,
estaremos em face de uma concentrao fundiria ainda maior.
Alm disso, a propriedade da terra vem se tornando invel
a um nmero crescente de lavradores que dela necessitam para
trabalhar e no para negociar.
10.
Os
estabelecimentos registrados nos dados censitrios incluem os
que so dirigidos por pro-. prietrios e os que so dirigidos
por lavradores que no tm a propriedade da terra: arrendatrios,
parceiros autnomos e posseiros.
11.
Em
1950, apenas 19,2% dos lavradores no eram proprietrios dos
seus estabelecmentos rurais. Em 1975, essa porcentagem tinha
subido para 38,1 %. Em 1950, para cada lavrador no proprietrio
havia 4.2 que eram proprietrios. Em 1975, para cada lavrador no
proprietrio havia apenas 1.6 proprietrios.
12.
Esses nmeros,
constantes dos censos oficiais, no incluem aqueles que so
trabalhadores rurais propriamente ditos e, portanto, sem terra,
assalariados permanentes, assalarados temporrios, parceiros
subordinados, mas somente os responsveis pelos
estabelecimentos.
13.
Se analisarmos
a situao em relao aos pequenos produtores agrcolas,
verificaremos que ela ainda mais grave. Em 1975, para cada
lavrador proprietrio fiavia um no proprietrio da terra, no
que se refere aos estabelecimentos com menos de 20 ha. Se nos
limitarmos aos estabelecimentos com menos de 10 ha. que
constituem mais da metade das unidades de produo do pas,
notarerpos que para cada lavrador proprietrio h 1.3
lavradores no proprietrios. Desde 1950 vem se agravando essa
proporo, o que indica que um nmero crescente de lavradores
no tem terra e, para consegui-Ia, deve pagar renda ou forado
a invadi-Ia.
14.
Alm
disso devemos considerar os rnilhares de lavradores que tiveram
que sair da terra,
seja
terra prpria, seja terra arrendada, seja terra ocupada. Entre
1950 e 1970, as oporiunidades de trabalho para terceiros na
agropecuria, assalaria,dos e paroeiro5 subordinados, caram
em cerca de um milho e meio de empregos.
15.
O
estrangulamento da pequena agricultura, por sua vez, est
intimamente associado expanso das pastagens e a poltca
inadequada de reflorestamento. Em 1970, os estabelecimentos
agropecurios com mais de 20 ha. tinham 50,6% da sua rea
tomados por pastos e apenas 8,5io por lavouras. J os
pequenos produtores, com estabelecimentos de menos de 20 ha.,
dedicam 50,1 i de suas terras lavoura e 21,1io pecuria.
16.
Alm
do mais, a poltica de distrbuio do crdito, beneficia
os grandes mais do que os pequenos, embora mais numerosos, e o
risco de execuo de hipotecas, tem contribudo ainda mais
para agravar a situao. Medidas recentes apara alterar essa
situao, deolaradamente conjunturais, no representam uma
reorientao da poltica econmica.
17.
De modo
especial, lembramos a triste situao em que se encontra o
trabalhador rural no Nordeste. Duas dcadas de interveno
governamental, atravs do DNOCS e SUDENE, naquela regio com
objetivo de superar o desiquilbrio scio-econmico,
beneficiaram os grandes proprietrios em detrimento dos
trabalhadores rurais. A estrutura fundiria nordesti,na agravou
a situao de opresso e escravido. O mesmo risco correm
projetos semeIhantes destnados a outras regies.
O
????l/b>span lang="PT" style="mso-ansi-language: PT">modelo poltico
a servio da grande empres
18.
A poltica
de incentivos fiscais uma das causas fundamentais da expanso
das grandes empresas agropecurias custa e em detrimento da
agrcultura familiar. At julho de 1977, a Superintendncia
do Desenvolvimento da Amaznia havia aprovado 336 projetos
agropecurios, nos quais seriam investidos 7 bilhes de
cruzeiros. Dessa importncia, apenas 2 bilhes correspondiam a
recursos prprios das empresas, enquanto os restantes 5 bilhes,
mais de 70 do total, eram provenientes dos chamados
incentivos fiscais.
19.
A poltica
de incentivos fiscais desvia dinheiro de todos para uso de uma
minoria, no atendendo s exigncias do bem comum. Esse
dinheiro deixa de ser plicado em obras de interesse pblico
para ser desfrutado, como coisa prpria, pela grande empresa.
Embora se reconhea oficialmente que a maior parte da alimentao
em nosso pas provm dos pequenos produtores, at hoje no
se promoveu uma poltica de incentivos fiscais ou de renda em
seu favor. Essa poltica revela o Estado comprometido com os
interesses dos grandes grupos econmicos.
20.
Essa
orientao oficial estimulou a entrada da grande empresa no
campo. Um vultoso programa oficial, o PROLCOOL, baseado em
subsdios governamentais, j est aumentando a concentrao
da terra, a expulso de Iavradores, quando poderia ser uma
aportundade privilegiada para uma redistribuio de terras.
21.
" A
poltica de incentivos, na Amaznia, no aumentou a
produtividade das grandes fazendas de gado, que apresentam uma
taxa de utilizao da terra inferior dos pequenos
produtores. Conclui-se da que, por ora, os grandes grupos econmicos
apenas visam beneficiar-se dos incentivos fiscais.
22.
Ainda
na Amaznia, grandes em.presas invadem os rios com navios
pesqueiros equipados com frigorficos. Desenvolvendo psca
predatria, levam fome as populaes ribeirinhas que
completam sua dieta pobre com a pesca artesanal.
Pescadores
artesanais de reas costeiras so igualmente prejudicados por
projetos tursticos e por dejetos industriais.
A
questo das
terras dos povos indgenas
23.
Nenhuma
dais comunidades indgenas, em contato com a sociedade
nacional, escapou s investidas sobre suas terras.
24.
Apesar
da vigncia do Estatuto do fndio, os conflitos em reas indgenas
se tornam cada vez mais violentos e generalizados. Tais confitos
se ligam aos seguintes fatores: no demarcao oficial de
suas terras; invaso de seus territrios j demarcados;
comercalizao e aprop iao pela FUNAI dos recursos de
suas terras; preconceito de que o ndip um estorvo ao
desenvolvimento; no reconhecimento de que suas terras Ihes
cabem, por direito, como povos; desbonhecimento das exigncias
especficas do relacionamento do ndio com a ter
ca
segundo sua cultura, seus usos, costumes e sua memria histrica;
enfim, total marginalizao do ndio da prpria poltica
indigenista, no seu plarrejamento e na sua execuo.
Migraes
e violncia
no campo
25.
H no
pas, milhes de migrantes, muitos dos quais obrigados a sair
do seu lugar de origem, ao Iongo dos anos, devido principalmente
cancentrao da propredade da terra, extenso das
pastagens e transformao nas relaes de trabalho na
lavoura. Sem contar os milhares de migrantes que, coimo extenso
da migrao interna, tm se dirigido aos pases vizinhos.
26:
Uma
grande parte dos lavradores migrou para as grandes cidades
procura de uma oportunidade de trabalho, ndo engrossar a massa
marginalizada que vive em candies subumanas nas favelas,
invases e alargados, em loteamentos clandestinos, cortios e
nas senzalas modernas dos canteiros de obras da construo
civil. O desenraizar:ento do povo gera insegurana pelo
rompimento dos vnculos sociais e perda dos pontos de referncia
culturais, sociais e religiosos, levando disperso e
perda de identidade.
27.
Outra
parte se dirige s reges agrcolas pioneiras procura de
terras. Entretanto, com freqncia, sua tentativa de fixar-se
terra choca-se contra uma srie de barreiras: dificuldade
para obter o ttulo definitivo da terra, no caso de compra; a
falta de apoio ou o prprio fracasso das companhias co
lonizadoras;
nova expulso da terra, ante a chegada de novos grileiros ou de
reais ou pretensos proprietrios.
28.
Em quase
todas as unidades da Federao, sob formas distintas surgem
conflitos entre, de um lado, grandes empresas nacionais e
multinacionais, grileiros e fazendeiros e, de outro, posseiros e
ndios. Violn.cias de toda a ordem se cometem contra esses ltimos
para expuls-tos da terra. Nessas violncias, j se comprovou
amplamente, esto envolvidos desde jagunos e pistoleiros
profissionais at foras policiais, oficiais de justia e at
juzes. No raro observa-se a anomalia gravssima da composio
de foras de jagunos e policiais para executar sentenas de
despejo.
29.
A situao
tem-se agravado muito depressa. Tomando como referncia a regio
de Canceio do Araguaia, no sul do Par, podemos ter uma idia
da velocidade e amplitude da situao de conflito. No comeo
de 1979, havia 43 conflitos identificados e cadastrados. Seis
meses depois, os conflitos j eram 55. No final do ano j eram
mais de 80. No Estado do Maranho, tradicionalmente conhecido
como o Estado das terras livres, abertas entrada de
lavradores pobres, foram arrolados, em 1979, 128 conflitos,
algumas vezes envolvendo centenas de famlias. Em trs casos,
pelo menos, o n..'mero de famlias envolvidas ultraa o
milhar, sendo , grande a concentrao da violncia nos vales
do Mearim e do Pindar.
30.
Estudos
recentes mostraram que a cada trs dias, em mdia, os grandes
jornais do sudeste publicam uma notcia de conflito pela terra.
Comprova-se que essas notcias correspondem a menos de 10% dos
conflitos cadastrados pelo movimento sindical dos trabalhadores
na agricultura. Um levantamento do nmero de vtimas que
sofreram violncias fsicas, feito atravs de jornais, indica
que mais de 50% delas morrem nesses confrontos.
31.
Isso
mostra a extrema violncia da luta pela terra em nosso pas,
com caractersticas de uma guerra de extermnio, em que as
baixas mais pesadas esto do lado dos lavradores pobres. Esse
processo se acentua na chamada Amaznia Legal, embora ocorra
tambm em outras regies.
2.
Responsablidade pela stuao
32.
Certamente todos ns temos alguma responsabilidade em relao
a esta situao de sofrmento e misria. Para que se possa
somar foras e transformar a realidade, devem ser identificadas
as verdadeiras causas da situao.
33.
A
responsabilidade no cabe a Deus, como se d a entender quando
se diz que "as coisas esto assim porque Deus quer".
No vontade de Deus que o povo sofra e viva na mis,:ria.
34.
A responsabilidade
do prprio povo trabaIhador poder estar na falta de maior unio
e organizao. Por outro lado, o povo tem sido impedido de
participar e decidir dos des;inos do pas.
3:
A responsabilidade
maior cabe aos que montam e mantm, no Brasil, um sistema de
vida e trabalho que enriquece uns poucos s custas da pobreza
ou da misria da maiora. A injustia que cai sobre os
posseiros, os ndios, e muitos trabalhadores rurais no
apenas ao de um grileiro e seus capangas, de um delegado e
seus policiais, de um juiz e seus oficiais de justia, de um
cartrio e seu escrivo, , antes, a concretizao
localizada da "injustia institucionalizada" de que
fala o documento de Puebla.
36.
Isto
acontece quando a propriedade um bem absoluto, usado como
instrumento de explorao. Essa situao tornou-se
exacerbada com o caminho do desenvolvimento econmico que vem
sendo percorrido em nosso pas, escolhido sem a particpao
popular. O modelo de desenvolvimento econmico adotado favorece
o lucro ilimitado dos grandes grupos econmicos. Tcnicas mais
modernas foram incorporadas em muitos setores de produo
custa de forte dependncia externa, no que se refere
tecnologia, ao capital e energia. O rpido crescimento da dvida
externa, que segundo se anuncia, chega a 50 bilhes de dlares,
representa um dbito correspondente a cerca de oito salrios mnimos
para cada brasileiro em mda, inclusve aqueles que esto
fora da fora de trabalho, como o caso de crianas, velhos
e invlidos, e incluindo aqueles que, embora trabalhando,
jamais receberam sequer o salrio mnmo por seu trabalho.
37.
Essa dvida,
cuja existncia e crescimento tem sua raiz na nossa dependncia
em relao s mul.tinacionais, agrava poderosamente as condies
de
vida e de trabalho da populao rural, pois sobre a
agricultura recaiu grande parte desse pesado tributo.
Intensificaram-se exportaes sem a contrapartida de um volume
crescente, na mesma proporo, de mercadorias importadas ou
disponveis para consumo ou investimento. Excedentes agrcolas
tem sido extrados custa da reduo das condies de
vida dos lavradores. Com incentivo oficial, reas de lavoura
transformaram-se em pastagens. Programas de colonizao, como
o da Transamaznica, praticamente desativados, aram a
segundo plano em favor da pecuria extensiva. Bens
tradicionalmente produzidos aqui, caso do milho e do feijo,
esto sendo importados agora.
Concentrao
do capital e concentrao do
poder
38.
O desejo
incontrolado de lucros leva a concentrar os bens produzidos com
o trabalho de todos nas mos de pouca gente. Concentram-se os
bens, o capital, a propriedade da terra e seus recursos,
concentrando-se ainda mais o poder poltico, num processo
cumulativo resultante da explorao do trabalho e da margnalizao
social e poltica da maior parte de nosso povo.
39.
Estamos
diante de um amplo processo de expropriao dos lavradores,
levada a efeito por grupos econmicos. Lamentavelmente, a prpria
definio da poltica governamental em relao aos
problemas da terra fundamenta-se num conceito de desenvolvmento
social inaceitvel para uma viso humanista e crist da
sociedade.
..
40. No se pode aceitar que os objetivos eco
nmicos,
mesmo numa certa fase do desenvolvimento, sacrifiquem o
atendimento das necessidades e dos valores fundamentais da
pessoa humana, como d a entender o documento do Ministro da
Agricultura que fixou as diretrizes para o setor agrcola
(Documento publicado pelo "O Estado de So Paulo", de
19.08.79).
42.
Onde a
expropriao no ocorre diretamente, nem por isso a grande
empresa deixa de se fazer presente, estrangulando economicamente
os pequenos lavradores. Dados do Ministrio do Interior,
recolhidos no posto de migraes de Vilhena, em Rondnia,
mostram que os milhares de m'igrantes chegados quele territrio
procedem de reas de pequena lavoura de Minas Gerais, Esprito
Santo, Paran e Santa Catarina, principalmente. Milhares de
pequenos agricultores tm se deslocado do Rio Grande do Sul em
direo ao Mato Grosso. Em virtude do escasseamento e do preo
exorbitante da terra nos seus lugares de origem, esses agri
41.
A poltica
dos incentivos fiscais, deu ocasio especulao fundiria
e aos grandes negcios com a propriedade da terra. A expulso
atinge no s os posseiros, que chegam hoje no pas a c,erca
de 1 milho de famlias e os povos indgenas, como tambm
arrendatrios e parceiros, atravs da substituio da
lavoura pela pecuria. No caso dos posseiros, quando tentam
permanecer na terra, no tm meios para pagar despesas
judiciais, demarcaes e percias, iniciando as aes j
derrotados de
vida e de trabalho da populao rural, pois sobre a
agricultura recaiu grande parte desse pesado tributo.
Intensificaram-se exportaes sem a contrapartida de um volume
crescente, na mesma proporo, de mercadorias importadas ou
disponveis para consumo ou investimento. Excedentes agrcolas
tem sido extrados custa da reduo das condies de
vida dos lavradores. Com incentivo oficial, reas de lavoura
transformaram-se em pastagens. Programas de colonizao, como
o da Transamaznica, praticamente desativados, aram a
segundo plano em favor da pecuria extensiva. Bens
tradicionalmente produzidos aqui, caso do milho e do feijo,
esto sendo importados agora.
Concentrao
do capital e concentrao do poder 38. O desejo
incontrolado de lucros leva a concentrar os bens produzidos com
o trabalho de todos nas mos de pouca gente. Concentram-se os
bens, o capital, a propriedade da terra e seus recursos,
concentrando-se ainda mais o poder poltico, num processo
cumulativo resultante da explorao do trabalho e da margnalizao
social e poltica da maior parte de nosso povo.
39.
Estamos
diante de um amplo processo de expropriao dos lavradores,
levada a efeito por grupos econmicos. Lamentavelmente, a prpria
definio da poltica governamental em relao aos
problemas da terra fundamenta-se num conceito de desenvolvmento
social inaceitvel para uma viso humanista e crist da
sociedade.
..
40. No se pode aceitar que os objetivos econmicos,
mesmo numa certa fase do desenvolvimento, sacrifiquem o
atendimento das necessidades e dos valores fundamentais da
pessoa humana, como d a entender o documento do Ministro da
Agricultura que fixou as diretrizes para o setor agrcola
(Documento publicado pelo "O Estado de So Paulo", de
19.08.79).
41.
A poltica
dos incentivos fiscais, deu ocasio especulao fundiria
e aos grandes negcios coam a propriedade da terra. A expulso
atinge no s os posseiros, que chegam hoje no pas a c,erca
de 1 milho de famlias e os povos indgenas, como tambm
arrendatrios e parceiros, atravs da substituio da
lavoura pela pecuria. No caso dos posseiros, quando tentam
permanecer na terra, no tm meios para pagar despesas
judiciais, demarcaes e percias, iniciando as aes j
derrotados.
42.
Onde a
expropriao no ocorre diretamente, nem por isso a grande
empresa deixa de se fazer presente, estrangulando economicamente
os pequenos lavradores. Dados do Ministrio do Interior,
recolhidos no posto de migraes de Vilhena, em Rondnia,
mostram que os milhares de m'igrantes chegados quele territrio
procedem de reas de pequena lavoura de Minas Gerais, Esprito
Santo, Paran e Santa Catarina, principalmente. Milhares de
pequenos agricultores tm se deslocado do Rio Grande do Sul em
direo ao Mato Grosso. Em virtude do escasseamento e do preo
exorbitante da terra nos seus lugares de origem, esses agricultores
no tm condies de ampliar suas prprias oportunidades de
trabalho e d,e garantir a seus fiIhos, que crescem e constituem
famlia, a possibilidade de continuarem na lavoura. S Ihes
resta migrar.
43.
Em
grande parte, a falta de recursos para cobrir o preo da terra
nas regies de origem desses migrantes vem do fato de que os
rendimentos do seu prprio trabalho agrcola so amplamente
absorvidos pelas grandes empresas de que se tornaram
fornecedores, que esto criando mecanismos quase compulsrios
de comprometimento e comercializao de safras. Nesses casos,
embora as grandes empresas no expropriem diretamente o lavra-.
dor, subjugam o produto de seu trabalho. Tem sido assim com os
grupos econmicos envolvidos na industrializao de produtos
hortigranjeiros e outros. Na verdade, os lavradores, am de
fato a trabaIhar como subordinados dessas empresas, nos chamados
"sistemas integrados", embora conservando a
propriedade nominal da terra. S que, nesse caso, a parcela
principal dos ganhos no Ihes pertence.
44.
Outro
fator que desanima o agricultor . a absoluta falta de es,coamento
da prod,uo e o preo irrisrio do fruto de seu trabalho.
45.
necessrio
considerar, tambm, a prtica sistemtica do atravessamento
na comercializao dos produtos agrcolas. Em muitos produtos
destinados ao consumo urbano, como acontece com os gneros
alimentcios essenciais, os setores comerciais intermedirios
- transportadores, atacadistas
e varejistas - costumam reter no raro mais de 50% do preo
final pago pelo consumidor.
46.
No se
pode esquecer, ainda, de um certo carter perverso no mecanismo
de preo dos gneros alimentcios de origem agrcola. O
alimento considerado ,caro apelo consumidor urbano e que o
produtor agrcoa considera barato e insuficientemente pago
pelo comprador, beneficia, ainda, uma outra categoria econmica.
Na verdade, o custo dos alimentos consumidos pelo trabalhador
urbano caro em face do salrio baixo por ele recebido, mas
barato para o patro que emprega o seu trabalho. Aquilo que
falta no pagamento dos produtos do trabaIho do lavrador aparece,
de fato, como mo-de-obra barata ma .contabilida.de e no lucro
da empresa ,nacional e multinacional. Ovando o lavrador compra
alguma coisa produzida pela indstria - como 0 adubo, o
inseticida, a roupa, o calado, o medicamento - paga caro, em
comparao com os seus prprios ganhos; quando vende o seu p
oduto, que vai ser consumdo na cidade, s consegue vend-Io
barato em comparao com os lucros da grande indstria
beneficiada pelo barateamento do preo da fora de trabalho.
Estamos diante de uma clara transferncia de renda da pequena
agricultura, produtora da maior norte dos alimentos, para o
grande capital. Mecanismo semelhante opera no caso do confisco
cambial
47.
At
organismos do Estado tm sn envolvido, diretamente ou atravs
de empresas :pblicas, em conflitos pela terra. Esse
envolvimento fica muito mais claro nas dis,putas em torno das
desapropriaes
de lavradores para a construo de rodovias e de barragens,
como acontece em Itaipu e no Vale do So Franciseo.
Raciocinando como empresrios de empresas privadas, mesmo no
o sendo, no intuito de supostamente diminuir custos, os
representantes do Estado nesses empreendimentos esquecem que as
lavradores dessas regies no tm terra para negociar, mas
para trabalhar. As indenizaes que o Estaco paga so
geralmente insuficientes para que o Iavrador retome em outra
parte a sua vida de trabalho, nas mesmas condies em que se
encontravam antes. Ou ento transferido para reas onde so
ms as condies de vida e trabalho, mergulhando rapidamente
numa situao de grande misria. o que ocorreu na barragem
de Sobradinho, na Bahia, e ameaa repetir-se na regio da
barragem de Itaparica, em Pernambuco e Bahia, envolvendo 120 mil
pessoas. Os agricultores no tm sido atendidos na sua exigncia
de indenizao pelos lucros cessantes, reassentamento em condies
iguais ou melhores, indenizao justa, ou pagamento de terra
com terra quando assim for de seu desejo.
Acumulao
e degradao
48.
Os que
no conseguem resistir a essas diferentes presses e agresses,
no conseguem continuar como posseiros, colonos, parceiros,
arrendatrios, moradores; transformam-se em proletrios, em
trabalhadores procura de trabalho no s no camp.o, mas
tambm na cdade. sabida a situao dos trabalhadores
avulsos em amplas regies
do pas, conhecdos como bias-frias em So P.aulo, Minas
Gerais, Paran, Rio de Janeiro, Gois; ou como
"clandestinos" em Pernambuco; ou "volantes"
na Bahia e em outrrs regies. As oportunidades de emprego para
esses trabalhad:ores so sazonais, o que os impede de trabalhar
todos os meses do ano. Para atenuar as dificuldades que
enfrentam, aceitam deslocar-se para grandes distncias, levados
pelo "grato", longe da famlia, sem qualquer direito
trabalhista assegurado. Trabalhadores de So Paulo so encontrados,
em certas pocas do ano, trabalhando no Paran ou em Minas
Gerais.
49.
Mais
grave aind.a a situao dos pees na Amaznia Legal. So
trabalhadores sem terra, recrutados pelos "gatos" em
Gois, no Nordeste e rnesmo em So Paulo e depois vendidos
como uma mercadoria qualquer aos empreiteiros encarregados do
desmtamento.
50.
O "gato",
como conhecido em amplas regies, opera como um agenciador
de trabalhadores. Geralmente, possui ou aluga um caminho para
transportar os pees, recrutando-os sob promessas de salrios
e regalias que no sero cumpridas. Como no h nenhuma
fiscalizao, quanto mais o trabaIhad.or se aproxima do local
de trabalho, mais longe fica de qualquer proteo ou garantia
quanto aos seus direitos trabalhistas. No diferente a situao
.de muitos trabalhadores rurais nas outras regies do pas
quanto a estes direitos.
51.
Justifica-se
a venda de pees pelas dvidas que o trabalhador obrigado a
contrair, durante a viagem,
com a alimentao e o prprio transporte. A dvida
transferida do "gato" ao empreitero que, em nome
dela, escraviza o peo enquanto dele necessitar. Os policiais,
os danos de "bolichos" e os donos de penses nos
povoados sertanejos esto quase sempre envolvidos nesse trfico
humano. Ovando o trabalhador tenta fugir quase sempre
castigado ou assassinado em nome do princpio de que se trata
de um ladro - est tentando fugir com o que j pertence ao
empreiteiro que o comprou: a sua fora de trabalho.
52.
Com o
programa de aproveitamento da borracha natural, o prprio
Estado estimula o recrutamento de mlharas de seringueiros para
formar novos "soldados da borracha", sem se preocupar
em mudar as relaes patro-trabalhadr.
53.
Houve
sem dvida, iniciativas apor parte de responsveis pela poltica
de desenvolvimento agrcola, especialmente, em algumas regies
do pas. Mas, por no terem ,abrangido o conjunto das situaes
dos trabalhadores rurais e por terem alcanado uma proporo
relativamente pequena de interessados, esses programas no tm
efetivamente respondido s necessidades dos homens do campo. De
qualquer modo, a estrutura fundiria e seus aspectos sociais
fundamental e condicionam o sucesso de qualquer poltica de d,esenvolvimento
econmico e social.
54.
Dreitos
conquistados penosa e legitimamente ao longo da nossa histria,
consubstanciados em muitas de nossas leis - como o caso das
garantias fundamentais da pessoa, a igualdade jurdica dos
cidados, a previdncia social, as garantias trabalhistas e a
prpria legislao fundiria - tm sido precariamente
observados, sobretudo em relao aos bias`frias, aos
posseiros, arrendatrios, parceros, pees, seringueiros,
pescadores, garimpeiros, carvoeiros.
55.
Merece
meno especal os povos indgenas, dizimados atravs dos sculos
e espoliados em seus legtimos direitos e agora novamente ameaados
quando, sob a alegao de exigncias da Segurana Nacional,
se pretende reservar uma faixa de 150 quilmetros ao longo da
fronteira oeste, o que significaria a destruio do habitat
das naes indgenas ali residentes.
II.
FUNDAMENTAO DOUTRINAL
1.
A terra um dom de Deus a todos os homens 56. Nesta parte
doutrinal, na qral procuramos descobrir os critrios para
discernir nossas opes pastorais a partir da realidade acima
descrita, claro que no pretendemos elaborar um tratado
exaustivo de toda a mensagem bblica e doutrnal da tradio
crist que a Igreja recebeu, enriqueceu e fielmente conservou
para ns. Oueremos apenas lembrar alguns temas, explicitar
algumas idias, que nos possam ajudar a compreender o problema
da posse e uso da terra numa viso crist, socialmente justa e
rrrais fraterrka.
57.
claro tambm que os textos aos quais nos referimos foram
formulados em contextos sociais, culturais e religiosos
diferentes daquele em que vivemos hoje. No queremos cair no
simplismo de tirar concluses infundadas a partir de transposies
meramente literais. Para alm da letra dos textos, queremos
chegar ao esprito que os anima, grande mensageXn religiosa
que eles nos transmitem e que, na sua pureza e simplicidade
facilmente compreendida pelos puros e simples de corao.
58.
A Igreja,
na sua doutrina social, tratou muitas vezes do problema da
propriedade e, explicitamente, da propriedade da terra.
59.
Essa
doutrina, a Igreja no a formulou apenas em resposta aos
desafios que o problema levanta em nossa sociedade, mas tambm
em consonncia com uma longa tradio que tem suas razes na
Bblia, na mensagem de Jesus, no pensamento dos Santos Padres e
Doutores. Com amor e fidelidade, ela meditou nestes textos e
deles soube extrair as suas implicaes sociais para a
sociedade em que vivemos.
60.
Deus
o criador e soberano Senhor de tudo. "Sim, o grande Deus
o Senhor, o grande Rei, maior que os deuses todos; em suas mos
est a terra inteira, dos vales aos cimos das montanhas; dele
o mar, foi Ele quem o fez e a terra firme suas mos
modelaram" (SI 94).
61.
Como
criador e Senhor, Deus que tem poder de definir o uso e a
destinao da terra. Desde o
incio Dele a entregou aos homens para que a submetessem e dela
tirassem o seu sustento (Gn 1, 23-30).
62.
Formulando
hoje sua doutrina social, a Igreja conserva a lembrana das
severas advertncias dos Profetas de Israel, que denunciavam a
iniqidade dos que usavam a terra como instrumento de espoliao
e opresso dos pobres e dos humildes. No se esquece do desgnio
de Deus de que a terra devia ser o e material da vida de
uma comunidade fraterna e servial.
63.
Mas
especialmente nos ensinamentos de Jcsus que ela vai procurar as
fontes de sua doutrina social.
64.
Jesus,
o Filho de Deus, inaugura a Nova Aliana e constitui o novo
povo de Deus e a nova fraternidade pela particpao em sua
vida divina. Ele nos reconcilia com o Pai, realiza a libertao
total da escravido do pecado e nos faz a todos herdeiros de
Deus e seus co-herdeiros.
65.
Todo o
Novo Testamento, a Nova Aliana de Deus com seus filhos, irmos
de Jesus, nos orienta no sentido da partilha e da prtica da
justia na dstribuio dos bens materiais, como condio
necessria da fraternidade dos filhos do mesmo Pai, conforme o
ensinamento do Sermo da Montanha [Ml 5;6;7). A converso
sincera encontra logo a expresso do gesto do dom e do
restabelecimento da justia, to bem retratada no episdio de
Zaqueu [Lc 19,1ss). O apego exagerado aos bens materiais,
a
recusa a reparti-tos com os pobres, podem significar uma
barreira para o seguimento radical ao Senhor [Ml 19,16ss).
66.
O deal
evanglico a ser atingido, a prefigurao na terra do reino
definitivo, quando Deus ser tudo em todos, a construo
de uma sociedade fraterna, fundada na justia e no amor. Para o
Evangelho, as bens materiais no devem ser causa de separao,
de egosmo e de pecado, mas de comunho e de realizao de
cada pessoa na comunidade dos filhos de Deus.
67.
A Igreja
tem presente a experincia da primitiva comunidade de Jerusalm,
quando a firaternidade em Cristo, vencendo as barreiras do egosmo,
exprimia-se em gestos de partilha: "Todos os fiis tinham
tudo em comum; vendiam suas propriedades e seus bens e
dividiam-nos por todos segundo a necessidade de cada um"
(At 2,44-45).
68.
Na
elaborao de sua doutrna, a Igreja, hoje, procura aprender
da experincia dos Santos Padres Antigos, que procuravam
traduzir, para as suas sociedades, as lies da Sagrada
Escritura. Ela ouve ainda o eco das expresses de grande vigor
com que eles tambm denunciavam a iniqidade dos poderosos.
69.
"Foi
a avareza que repartiu os pretensos direitos de
posse" (Sio. Ambrsia, P.L. Vol. 42, Coluna . 1046).
"A terra foi dada a todos e no apenas aos ricos"
(Sto. Ambrsia, Apud Populorum Progressio, n 23,
De Nabuthe, C. 12, n 53 P.!.. t4,747).
70.
"Pelo
direito das gentes, implantou-se a distino das propriedades
e o regime de servido. Pelo direito natural, porm, vigorava
a posse comum de todos e de todos a mesma liberdade" (Decr.
de Graciano, L. II, D. 13). Texto particularmente
expressivo pelo fato de associar apropriao individual o
regime de servido. O egosmo provoca os fortes a se
apropriarem no s dias coisas, mas tambm das pessoas dos
mais firacos.
71.
Ainda
hoje a Igreja vai procurar luz e orientao no pensamento dos
grandes Doutores que tentavam tambm fazer a sntese entre a
fidelidade Tradio e as novas realidades sociais com que
se defrontavam. Ela consulta com especial ateno o pensamento
de Santo Toms de Aquino que j vira na propriedade particular
no um obstculo comunho das bens, mas um instrumento
para a realizao de sua destinao social: "A comunidade
dos bens atribuda ao direito natural, no no sentido de
que o direito natural prescreva que tudo deva ser possudo em
comum e nada seja possudo como prprio, mas no sentido que,
segundo o direito natural, no existe disti,no de posses,
que o resultado da conveno entre os homens e decorre do
direito positivo. Da se conclui que a'apropriao individual
no contrria ao dreito natural, mas se acrescenta ele
por inveno da razo humana" (Summa Theologica, II,
Ilae q. 66 arr. 2, ad 1). Assim a apropriao individual
seria, para Santo Toms, um dos meios de realizar a destinao
social dos bens a todos. o que ele mesmo explicita no
mesmo texto, cem maior preciso: "Ouanto faculdade de
istrar e gerir, lcito que o homem possua coisas como
prprias; quanto a us, no deve o homem ter as coisas
exteriores como prprias, mas como comuns, a saber, de maneira
a comunic-Ias aos outros".
72.
Com a
evoluo da Sociedade, o direito positivo teve tambm de
evoluir e explicitar normas jurdicas para regulamentar a
crescente complexidade da vida em sociedade e especificamente
com relao ao problema da propredade, da posse e do uso da
terra.
73.
A Igreja,
embora respeitando sempre a justa autonomia das cincias jurdicas
e do direito positivo, considera de seu dever pastoral a misso
de proclamar as exigncias fundamentais da justia.
74.
assim que, para ser fiel a essa longa tradio brevemente
evocada, a Igreja, na sua doutrina social, quando defende hoje a
propriedade individual da terra e dos meios de produo,
enfatiza sempre a sua funo social. Assim, Pio XII denuncia o
capitalismo agrrio que expulsa do campo os humildes
agricultores forados a abandonar sua terra em troca de iluses
e frustraes no meio urbano: "O capital se apressa a
apoderar-se da terra (...) quese torna, assim, no mais objeto
de amor, mas de fria especulao. A terra, nutriz
generosa das populaes urbanas, como das populaes
camponesas, a a produzir apenas para esta especulao e
enquanto o povo sofre fome, o agrcultor oprimido de dvidas,
caminha lentamente para a runa, a economia do pas se esgota,
para comprar a preos elevados o abastecimento que
se
v-lobrigada a importar do exterior" ("AI particolare
compiacimento". Alocuo aos membros do Congresso da
Confederao Italiana dos Agricultores, 15 de novembro de
1946, n 14).
75.
"O
conjunto dos bens da terra destina-se, antes de mais nada, a
garantir a todos os homens um decente teor de vida"
(Joo XXIII, Mater et Magistra, n 119).
76.
A Constituio
Pastoral "Gaudium et Spes", do Conclio
Vaticano II, explicitou as exigncias do direito natural com
relao ao problema da terra num texto de impressionante
atualidade para a situao brasileira. "Em muitas regies
economcamente menos desenvolvidas existem extensssimas
propriedades rurais, mediocremente cultivadas ou reservadas para
fins de especulao, enquanto a maior parte da populao
carece de terras ou possui s parcelas irrisrias e, por outro
lado, o desenvolvmento das populaes agrcolas
apresenta-se com carter de urgncia evidente. No raras
vezes, aqueles que trabalham por conta dos senhores ou cultivam
uma parte de seus bens a ttulo de arrendamento, recebem um salrio
ou retribuio indigna de um homem, no tm habitao
decente e so explorados pelos intermedirios. Vivendo na
maior insegurana, tal a sua dependncia pessoal, que Ihes
tira toda possiblidade de agir espontaneamente e com
responsabilidade, toda promoo cultural e toda a participao
na vida social e poltica. Portanto, so necessrias reformas
nos vrios casos: aumentar as remuneraes, melhorar as condies
d2 trabalho, aumentar a segurana no emprego, estimular a inicativa
no trabalho e, portanto, distribuir as propriedades
insuficientemente cultivadas por aqueles que a possam tornar
rendosas. Neste caso, devem-Ihes ser assegurados os recursos e
os nstrumentos indispensveis, particularmente os meios de
educao e as possibilidades de uma justa organizao cooperativista"
(GS n4 71).
77.
Paulo VI insiste no princpio que "a propriedade privada no
constitui para ningum direito incondicional e absoluto" (Populorum
Progressio, n 23).
78.
Joo
Paulo II, dirigindo-se aos agricultores de Oaxaca,
afirma: "De vossa parte, responsveis pelos povos, classes
poderosas que mantendes, por vezes, improdutiwas as terras que
escondem o po que falta a tantas famlias, a conscincia
humana, a conscincia dos povos, o clamor dos desvalidos e,
sobretudo, a voz de Deus, a voz da Igreja, vos repete comigo: No
justo, no humano, no cristo continuar com certas
situaes claramente injustas" [Aloc. em Oaxaca, AAS, LXI,
p. 210).
79.
"Os
bens e riquezas do mundo, por sua origem e natureza, segundo a
vontade do Criador, so para servir efetivamente utilidade e
ao proveito de todos e cada um dos homens e dos povos. Por isso
a todos e a cada um compete o direito primrio e fundamental,
absolutamente inviolvel, de usar solidariamente esses bens, na
medida do necessrio para uma realizao digna da pessoa
humana". Todos os outros direitos, tambm a propriedade e
livre comrcio, Ihe so subordinadas, como nos ensina
Joo Paulo II: "Sobre toda propriedade privada pesa uma
hipoteca social ".
80.
Uma
hipoteca uma garantia do cumprimento de obrigaes
assumidas. Da expresso do Santu Padre se conclui, pois, que
toda propriedade privada est, de certo modo, penhorada,
gravada pelo compromisso de sua destinao social.
81.
A propriedade
compatvel com aquele direito primordial , antes de tudo, um
poder de gesto e istrao, que, embora no exclua o
domnio, no o torna absoluto nem ilimitado. Deve ser fonte de
liberdade para todos, nunca de dominao nem de privilgios.
um dever grave e urgente faz-Io retornar sua finalidade
primeira" (Puebla, n 492).
2.
Terra de explorao e terra de trabalho
82.
Essa mensagem de Deus est viva na mente de grande nmero de
nossos trabalhadores rrais. Os posseiros a expressam quando
lutam pela "posse e uso" de sua terra, mais do que
pela "propriedade". Esta, a propriedade, em muitos
casos, representada pelos grileiros, 'pelos grandes
fazendeiros, pelas empresas agropecurias e agroindustriais.
Estas "negociam com a terra": um bem dado por Deus a
todos os homens.
83.
Esta
conscincia do povo nos alerta para a distino entre os dois
tipos de apropriao da terra que merecem nossa ateno:
terra de explorao, que nosso lavrador chama terra de negcio,
e terra de trabalho. Essa distino, entretanto, no
desconhece
a existnca da terra como terra de produo, da
propriedade rural que respeita o direito dos trabalhadores,
segundo as exigncias da doutrina social da Igreja.
84.
Terra de explorao
a terra de que o capital se apropria para crescer continuamente,
para gerar sempre novos e crescentes lucros. O lucro pode vir
tanto da explorao do trabalho daqueles que perderam a terra
e seus instrumentos de trabalho, ou que nunca tiveram o a
eles, quanto da especulao, que permite o enriquecimento de
alguns custa de toda a sociedade.
85.
Terra de trabalho
a terra possuda por quem nela troba4ha. No terra para
explorar os outros nem para especular. Em nosso pas, a concepo
de terra de trabalho aparece fortemente no direito popular de
propriedade familiar, tri5al, comunitria e no da aposse. Essas
formas de propriedade, alternativas explorao capitalista,
abrem claramente um amplo caminho, que viabiliza o trabaIho
comunitrio, at em reas extensas, e a utilizao de uma
teonologia adequada, tornando dispensvel a explorao do
trabalho alheio.
86.
H no
pas urma clara oposio entre dois tipos de regimes de
propriedade: de um lado, o regime que leva o conflito aos
lavradores e trabalhadores rurais, que a propriedade
capitalista; de outro, aqueles regimes alternativos de
propriedade, mencionados antes, que esto sendo destrudos ou
mutilados pelo capital: o da propriedade familiar, como a dos
pequenos lavradores do sul e de outras
regies; o da posse, no qual a terra concebida como
propriedade de todos e cujos frutos pertencem famlia que
nela trabalha, regime difundido em todo o pas e sobretudo na
chamada Amaznia Legal; a propriedade tribal e comunitria dos
povos indgenas e de algumas comunidades rurais.
87.
oportuna a advertncia de Joo XXIII: "No possvel
estabelecer, a priori, qual a estrutura que mais convm
empresa agrcola, dada a variedade dos meios rurais no interior
de cada pas e, mais ainda, entre os diversos pases do mundo.
Contudo, quando se tem um conceito humano e cristo do homem e
da famlia, no se pode deixar de considerar como ideal a
empresa que funciona como comunidade de pessoas: ento as relaes,
entre os seus membros e estruturas, correspondem s normas da
justia (...). De modo particular, deve considerar-se como
ideal a empresa de dimenses familiares. Nem se pode deixar de
trabalhar para qe uma e outra cheguem a ser realidade, de
acordo com as condies ambientais" (Meter et Magistra, n
139).
88.
No caso
de pequenos e mdios produtores, fica evidente que muitos so
involuntariamente transformados em instrumentos da explorao
de seus semelhantes, atravs da subordinao d sua produo
aos interesses das grandes empresas que exercem um controle
crescente, direto e indireto, sobre a economia agropecuria e
que so as beneficirias em ltima instncia do seu trabalho
e da riqueza extrada da terra.
89.
Cumpre
distnguir entre propriedade capitalista da terra e propriedade
privada da terra. Enquanto a primeira utilizada como
instrumento de explorao do trabalho alheio, a segunda
usada como instrumento de trabalho do prprio trabalhador e de
sua famlia, ou cultivada pelo proprietrio com mo-de-obra
assalariada, tendo funo social e respeitando s direitos
fundamentais do trabalhador. "A propriedade
particular ou algum domnio sobre os bens exteriores conferem a
cada um o espao absolutamente necessrio autonomia pessoal
e familiar; devem ser considerados como um prolongamento da
liberdade humana" (Gaudium et Spes, n 71).
90.
No
pretendemos, com as distines acima; trazer uma formulao
jurdica com a preciso tcnica que os textos de lei devem
ter. Queremos, antes, indicar quais os valores positivos que se
incluem no direito de propriedade privada e quas os
contra-valores que foram introduzidos pela ganncia opressora
dos poderosos. Confiamos objetividade dos juristas a misso
de encontrar frmulas jurdicas adquadas para a defesa do
direito de o propriedade da terra para aqueles que
efetivamente querem cultiv-Ia de modo produtivo.
91.
"A terra
uma ddiva de Deus". Ela um bem natural que pertence
a todos e no um produto do trabalho. Mas, o trabalho
sobretudo que legitima a posse da terra. o que entendem os
posseiros quando se concedem o direito de abrir suas posses em
terras livres, desocupadas e no trabaIhadas, pois entendem que
a terra um patrimnio comum e que enquanto trabalharem nela,
no podero ser expulsos.
92:
w
Importa, enfim, no esquecer a terra de moradia, problema
particularmente angustioso nas periferias urbanas, onde as famlias
so obrigadas a viver em condies desumanas de promiscuidade
e insegurana, e de onde, muitas vezes, so expulsas, at com
violncias, para se atenderem interesses das empresas imobilirias
ou por razes de urbanizao.
93.
Essa
expu!so da terra de moradia se apresenta mais injusta e
desumana, porque as famlias ficam expostas ao total desabrigo
e abandono.
III.
NOSSO COMPROMISSO PASTORAL
94.
Deus continua a zelar pelo seu povo. E, por meio da vida
do seu povo, Ele nos interpela. Que faremos para que a terra
seja um bem de todos?
Que
faremos para que a dignidade da pessoa humana seja respeitada?
Que
faremos para que a sociedade brasileira consiga superar a
injustia institucionalizada e rejeitar as opes polticas
antievanglicas? Consideramos como algo positivo o
questionamento aqui levantado. Entretanto, entendemos que sem aes
concretas que j respondam a esses desafios, a Igreja no ser
sinal do amor de Deus pelo homens. Por isso,
95.
1 -
Queremos, como primeiro gesto, procurar submeter o problema da
posse e uso dos bens da Igreja a um exame e a uma constante reviso
quanto sua destinao pastoral e social, evi. tendo a
especulao imobiliria e respeitando os direitos dos que
trabalham na terra.
96.
2 -
Assumimos o compromisso de denunciar situaes abertamente
injustas e violncias que se cometem em reas de nossas
dioceses e prelazias e combater as causas geradoras de tais
injustias e violncias, em fidelidade aos compromissos
assumidos em Puebla (Puebla, n 1160).
97.
3 -
Reafirmamos o nosso apoio s justas iniciativas e organizaes
dos trabalhacores, colocando as nossas foras e os nossos
meios a servio de sua causa, tambm em conformidade com os
mesmos compromissos (Puebla, n 1162).
98.
Nossa
atuao pastoral, cuidando de no substituir as iniciativas
do povo, estimular a participao consciente e crtica dos
trabalhadores nos sindicatos, associaes, comisses e outras
formas de cooperao, para que sejam realmente organismos autnomos
e livres, defendendo os interesses e coordenando as reivindicaes
de seus membros e de toda sua classe.
99.
4 -
Apoiamos os esforos do homem do campo por uma autntica
Reforma Agrria, em vrias oportunidades j definida, que
Ilie posibilte o o terra e condies favorveis
para seu cultivo. Para efetiv-Ia, queremos valorizar, defender
e promover os regimes de propriedade familiar, da posse, da
propriedade tribal dos povos indgenas, da propriedade comunitria
em que a terra concebida como instrumento de trabalho.
Apoiamos
igualnente a mobilizao dos trabalhadores para exigir a
aplicao e/ou reformulao das leis existentes, bem
como para conquistar uma poltica agrria, trabalhista e
previdenciria que venha ao encontro dos anseios da populao.
Apoiamos tambm a criao do Parque Yanomami na forma que
evite a reduo ou fragmentao daquele territrio
tribal, e insistimos na urgente demarcao das demais reservas
ndgenas, inclusive daquelas que se situam nas reas de
fronteira do nosso pas.
100.
5 -
Emperrhamo-nos em defender e promover as legtimas aspiraes
cfos trabalhadores urbanos - muitos deles expulsos do campo
- em relao aos direitos necessrios a uma existncia digna
da pessoa humana, especialmente no que se refere ao direito a terrerao
e moradia, alterando 0 regime de propriedade urbana e
da especulao imobiliria, e ao ireito furldamental ao
trabalho e justa remunerao.
101.
6" - Comprotemo-nos a condenar, de acordo com o documento
de Puebla, tanto o capitalismo, cujos efeitos funestos foram em
parte apontados neste documento, como o coletivismo marxista de
cujos malefcios temos notcia em outros pases [cf. Puebla,
n 312, 313 e 546).
102.
7 -
Renovamos nossos compromissos de aprofundar nas comunidades
eclesiais, rurais e urbanas, a vivncia do Evangelho -
convictos da sua fora transformadora - como maneira mais
eficaz de a Igreja colaborar com a causa dos trabalhadores.
Nessas comunidades, os cristos, impulsionados peIa
graa de Deus, iluminados pelo Evangelho de Jesus e animados
pela palavra da Igreja - por exemplo, pela encclica
"Meter et Magistra" do Papa Joo XXIII - entram num
processo de constante conscientizao e adquirem, cada vez
mais, uma viso crtica da realidade. Com os irmos na f e
todos os trabalhadores, procuraremos organizar uma nova
sociedade. Com eles, apoiados em Deus, despertaremos um novo esprito
de convivncia.
103.
Assumindo
um compromisso srio com os - trabalhadores, precisamos
alimentar sua e nossa coragem e sua e nossa esperana,
especialmente na hora das dificuldades e das perseguies.
Assim constantemente reanimados pela lembrana da promessa e da
certeza da libertao trazida pelo Senhor, vivida na
comunidade e celebrada no mistrio da Eucaristia, os cristos
cumpriro entre seus irmos trabalhadores, sua misso de
fermento, sal e luz.
104.
.
Assim, a Igreja contribuir permanentemente na construo do
homem novo, base de uma nova sociedade.
CONCLUSO
105. Fazemos
esse pronunciamento exatamente quando se defere hoje
agricultura uma grave responsabilidade no atendimento s exigncias
energticas alternativas e urgncia de aumentar nossas
exportaes.
106.
Receamos
que o desempenho dessas tarefas sirva de novo pretexto para
atropelar os direi
tos
dos humildes, em cuja defesa assumimos o nosso compromisso de
pastores. Esse receio no infundado. Entre a formas de
neocolonialismo denunciadas por Joo Paulo II, aparece hoje
como ameaadora uma organizao da economia internacional que
defere ao Brasil e a outras naes subdesenvolvidas a funo
de fornecedores de alimentos e matrias-primas de origem agrcola
s naes que controlam aquela economia. Nesse contexto,
grandes estratgias intensivas de capital reforariam a condio
de dependncia da economia brasileira e haveria de precipitar o
processo de proletarizao dos nossos homens do campo,
107.
Entendemos
que a problemtica dos trabalhadores rurais e urbanos e a
problemtica da terra s tero soluo verdadeira se forem
mudadas a mentalidade e a estrutura em que funciona a nossa
sociedade. Enquanto o sistema poltico-econmico estiver a
favor dos lucros do pequeno nmero de capitalistas, e enquanto o
modelo educacional servir de instrumento de manuteno desse
sistema, inclusive desestimulando a vida rural e seus valores,
ento no ter soluo verdadeira a situao de injustia
e de explorao de trabalho da maioria.
108.
Por
outro lado, reconhecemos que a experincia e a
criatividade de nosso povo que cultiva a terra podem indicar
caminhos novos para o aproveitamento de tecnologias alternativas
e de for. mas comunitrias e cooperativas de uso dos
instrumentos de trabalho.
109.
Essa
sociedade ser construda com o esforo de todos, com a necessria
participao dos jovens, com a unio e organizao dos
fracos, aqueles que o mundo tem por desprezveis e que Deus
escolheu para confundir e julgar os poderosos (of. 1 Cor 1 ,26ss).
110.
Finalmente, expressamos .nosso especiat apoio e estmulo a todos
os animadores de comunidade, agentes pastorais e membros de
organismos e entidades que, ao longo dos ltimos anos, realizaram
tarefas de Pastoral da Terra, Pastoral Indigenista, Pastoral Operria
e outras formas de Pastoral junto aos marginalizados e somamos
nosso trabaIho ao das outras Igrejas Crists unidas pelo mesmo
ideal.
111.
Pedimos
ao Senhor que nos ilumine, e nos d fora e coragem para pr em
prtica os compromissos que fizemos.
112.
Pedimos
aos nossos irmos na f e na esperana, os cristos todos de
nossas comunidades, que assumam conosco esses compromissos. A tarefa
ser de toda a Igreja. Ove o Senhor nos fortalea e nos ajude a
darmos aquele testemunho de unidade que Ele mesmo pediu na hora de
oferecer sua vida por ns (of. Jo 17).
NDICE
INTROGUO
I
- A REALiDADE DOS FATOS
1.
A terra de todos como terra de poucos A
concentrao da propriedade da terra no Brasil
O
modelo poltico a servio da grande empresa
A
questo da terra dos povos indgenas Migraes e violncias
no campo
2.
Responsabildade pela situao Concentrao
do capital e concentrao do poder
Acumulao
e degradao
II
- FUNDAMENTAAO DOUTRINAL
1.
A terra
um dom de Deus a todos os homens
2.
Terra de explorao e terra de trabalho III - NOSSO COMPROMISSO PASTORAL
CONCLUSO
|