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O QUE FORMAO PARA A
CIDADANIA?
Entrevista com a sociloga e
educadora Maria Victria Benevides
realizada por Silvio Caccia Bava, diretor
da ABONG, em janeiro de 2.000.
SILVIO: - Como voc est vendo, hoje, essa
discusso da cidadania? Existem significados
distintos que so atribudos ao conceito dependendo de quem
fala. Para voc, o que
cidadania hoje?
MARIA VICTRIA: - Cidadania para mim hoje se
resume a uma palavra, que a participao.
A participao como indivduo ou como um grupo organizado nas
mais variadas reas de
atuao na sociedade, na
esfera pblica. Ento cidadania para mim sinnimo de
participao, ou seja, de no omisso, indiferena etc., em
relao ao exerccio do poder.
SILVIO: - Eu tenho acompanhado alguns experimentos
de participao, e hoje em dia
consigo perceber que certos tipos de participao so muito
mais, vamos dizer assim,
mecanismos de cooptao dos de baixo, do que uma efetiva
democratizao do poder. Se
cidadania para voc participao, tem alguma condio
para essa participao, ou voc
est falando de uma maneira geral de participao?
MARIA VICTRIA:
- Eu estou me referindo uma participao que realmente
exige algumas
condies. claro que essa possibilidade de cooptao vai
sempre existir, mas isso existe
mesmo em uma democracia mais avanada. A possibilidade de
cooptao existe na
universidade, existe em relao ao sindicato, existe nos
partidos polticos, existe nas mais
variadas reas e instncias da sociedade, do poder. Ento, a
cooptao pode existir sim,
quando o prprio poder constitudo que abre espaos de
participao, em relao, por
exemplo, a movimentos de moradores, a conselhos de fiscalizao,
de gesto, etc. Ento
por isso que voc tem razo quando fala de certas condies,
no ? Uma dessas condies
a autonomia dessa participao do grupo, do movimento, da
associao, ou dos indivduos,
mtomados
individualmente como eleitores, por exemplo. Como eleitores que
vo participar de
processos de tomada de deciso atravs de consultas populares,
iniciativas legislativas,
referendos, plebiscitos etc. A possibilidade de cooptao
muito grave, mas ela pode ser
combatida de duas maneiras. Por uma maior informao, que a
alma de qualquer proposta
de cidadania, por uma maior informao que seja efetivamente
livre, de o
democratizado etc. E por uma preocupao com a autonomia tanto
do lado da participao
da sociedade, quanto do lado do poder constitudo, no sentido
de no impor
condicionamentos institucionais que subordinem, que leguem uma
tutela dessa participao.
SILVIO: -
A participao de que voc fala, eu estou entendendo que
uma via de mo
dupla. Na
sua opinio ela no existe sem a concordncia dos governos,
mas ela tambm no
existe sem uma presso social. Mas de fato, hoje em dia, nesse perodo, nessa mar de
desconstruo da cidadania que ns estamos vivendo,
mecanismos como oramento
participativo, ou como o funcionamento efetivo dos conselhos,
dependem muito mais do
Estado, do que da sociedade civil.
MARIA VICTRIA: - por isso que eu queria dar
como exemplo a figura dessas consultas
populares, que mostram como o poder constitudo pode desvirtuar
e mesmo brecar uma
participao efetiva da cidadania democrtica.
Por exemplo, no caso da regulamentao dessas
figuras jurdicas como referendos,
plebiscitos, iniciativa popular legislativa, que ns temos
inscritos na Constituio desde 1988,
no nvel federal, no nvel estadual, no nvel local, o
problema que se coloca que o Executivo
regulamenta de uma tal maneira que torna impossvel a livre
manifestao e a livre
participao. Por exemplo, quando s o Executivo pode
convocar, quando cabe ao Legislativo
decidir os temas que podem entrar numa convocao... A ltima
regulamentao na Cmara
Federal praticamente impede a realizao dessas consultas.
O projeto de consultas populares aqui em So
Paulo, no municpio, de autoria do ento
vereador Francisco Whitaker, foi aprovado na Cmara dos
Vereadores por maioria, alis para
a grande surpresa da oposio. Mas depois o prprio prefeito,
ento Paulo Maluf, vetou o
projeto, que continua engavetado at hoje. Ento, se brecou
claramente essa possibilidade
de um tipo de participao atravs de mecanismos
institucionais.
SILVIO: - Mas veja o outro lado da moeda, a Tribuna
Livre est funcionando. Alguns
membros da I da corrupo da Cmara Municipal sugeriram a
certas entidades da
sociedade civil que pedissem a constituio da Tribuna Livre
para se manifestarem. E apesar
de uma divulgao razovel, pouca gente compareceu, o que
sugere um certo descrdito
para as instituies. Ento, quando voc concentra a sua
definio de cidadania na questo
da participao, eu fico me perguntando: Mas quem quer essa
participao?". Ns estamos
em um perodo em que a cidadania est, vamos dizer assim, no
centro do debate da questo
do poder. O descrdito nas instituies, a crise que a gente
vive, estes fatores esto, vamos
dizer assim, fragilizando a existncia dessa cidadania de que
voc fala.
MARIA VICTRIA: - Eu acho interessante que a gente
volte a um clssico da cidadania
como Marshal para distinguir uma cidadania poltica e uma
cidadania social. No plano da
democracia poltica, no exerccio efetivo de deveres e
direitos polticos, ns estamos tendo
esses problemas, de uma manipulao, de cooptao, de brecar
mesmo essa participao
autnoma, livre, democrtica. Esse processo tem como
contrapartida do lado da sociedade
um desinteresse, um desencanto com a participao, que j foi
muito mais intensa no final
dos anos setenta pra c, e mesmo, o que pior do que tudo, um
desencanto e um
desinteresse pela prpria idia democrtica.
O mais perigoso a que o descrdito nas
instituies polticas e democrticas ultraa a
figura das pessoas, dos executivos, dos parlamentares, para
atingir o prprio cerne da ao
poltica, acaba se transformando num descrdito na ao poltica
e na sua capacidade
transformadora. Ento, a-se a ter uma atitude na vida
social que o oposto de qualquer
idia de cidadania democrtica, que o das estratgias
individuais, do salve-se quem
puder, da justia pelas prprias mos, excluindo qualquer
possibilidade de um mnimo de
solidariedade, no sentido do slido social, e de qualquer tipo
de participao mais ativa na
sociedade. Isso, em relao cidadania poltica. Embora eu
veja com muita apreenso o
estado atual e futuro dessa cidadania poltica, eu no posso
abrir mo dela, eu acho que ela
essencial e os democratas radicais devem fazer tudo para que
ela seja uma realidade, na
instncia do Executivo, do Legislativo e das vrias reas do
povo organizado, que o
sinnimo de cidadania.
Voc deve ter reparado que cidadania virou tambm
sinnimo de povo, quando se diz: A
cidadania exige tal coisa, A cidadania se manifestou ao
reivindicar tal coisa, a cidadania
no ite mais.... Ento, eu estou muito consciente dessa
realidade negativa e de riscos
inerentes, mas eu acho que se tem que insistir. E do lado dos
governos, se no houver
presso, eles continuaro, que da prpria essncia do
poder, e dos poderes executivos
principalmente, eles continuaro querendo controlar os
processos, isso no h a menor
dvida. At no caso mais exitoso de participao cidad,
como o caso do oramento
participativo, o Executivo, podendo controlar, vai querer
controlar, isso no h dvida.
Ento, o que se
tem que fazer de alguma maneira semelhante ao que ocorre com
os
processos eleitorais. Os processos eleitorais tradicionais,
votar em candidatos para o
Executivo, para o Legislativo, so evidentemente uma das
primeiras prticas da cidadania
poltica, das mais antigas e que se mantm com pontos
extremamente negativos, como a
existncia de legendas de aluguel, de compra efetiva de lugares
para os candidatos, a
manipulao da informao, que dos mais graves abusos do
poder econmico, a ausncia
de um mandato que tenha efetivamente condies de cobrana
por parte do eleitorado, que
tenha a possibilidade
de fiscalizao do eleitorado em cima dos representados... Eu,
por
exemplo, defendo um tipo de mandato imperativo para enfrentar
esses riscos e esses
problemas. A prpria participao fiscal no processo
eleitoral tambm tem muitos riscos e
muitos problemas, mas no vai ser por causa disso, que ns
vamos dizer que no precisamos
ter um processo eleitoral, rotineiro, formalmente institudo
etc.
Ento, tanto na participao tradicional, numa democracia
representativa, como na
participao em outras reas da atuao cidad, eu vejo a
enorme necessidade daquilo que
eu chamo de uma educao para a democracia, uma formao
para a cidadania, ou seja, um
movimento educacional no sentido poltico, que enfrente o
problema do descrdito, do
desinteresse, do egosmo poltico, do desencanto com a prpria
idia de democracia.
Eu fiquei muito impressionada com as ltimas pesquisas que
foram feitas, daquilo que se
chama de latino barmetro, no Brasil e pases da Amrica
do Sul. Essas pesquisas mostram
que o Brasil o pior colocado no sentido de opinies em relao
superioridade do regime
democrtico. 49% dos entrevistados preferem a democracia, mas h
24% para quem tanto
faz, um nmero
muito elevado, um quarto da populao absolutamente tanto faz,
ser
democracia ou ditadura, e o outro quarto prefere a ditadura.
Eu at entendo mais quem prefere uma ditadura,
porque assume radicalmente uma posio
favorvel ao autoritarismo, ao fechamento. Entendo mais do que
aquele para quem
realmente tanto faz, no v diferena nenhuma entre
democracia e ditadura. Esse um
problema serssimo. Agora, para enfrentar isso, s com um
processo educacional, um
processo de educao poltica no sentido da democracia e da
cidadania, e nisso que eu
tenho trabalhado mais.
Mas o outro lado, que recupera para a idia da
cidadania um sentido mais forte, que deixa de
estar revestida nesses aspectos formais, a cidadania social.
No sentido de que os cidados
tm direitos, direitos que so inalienveis, e direitos que so
no apenas reivindicaes
diante de prestaes que o Estado deve cumprir, mas tambm
possibilidades sempre em
aberto de criao de novos direitos. A cidadania nesse sentido
a possibilidade de fruio
efetiva de direitos sociais, econmicos e culturais, de fruio
efetiva no sentido de que esses
direitos no sejam apenas declamatrios, porque ns os temos
na Constituio, mas eles
precisam estar acoplados a garantias efetivas, a mecanismos
imediatos de garantia desses
direitos.
Por exemplo, foi muito ridicularizada uma lei
aprovada no Congresso que garante o direito
moradia. Ela foi muito ridicularizada porque da maneira como est
ridculo mesmo, teria que
todo mundo ter direito moradia etc. Essa lei significa o qu?
Que todo mundo tem direito a
ter uma casa?
SILVIO: - Voc sabe que o Japo e os Estados
Unidos, durante a discusso do Habitat II
foram radicalmente contra a afirmao desses direitos de
moradia, porque a institucionalidade
democrtica desses pases garante que, uma vez aprovada essa
lei, ela se torna efetiva para
todos. Ento eles foram contra...
MARIA VICTRIA: - um mecanismo auto-aplicvel imediato...
SILVIO: - Eles foram contra reconhecer esses
direitos de moradia como um direito humano
porque seno teriam que criar oramentos nos seus prprios pases
para atender a
necessidade de moradia de todo mundo.
MARIA VICTRIA: - Ento a nossa grande
dificuldade no reconhecer esses direitos, no
declarar esses direitos, isto j est amplamente
reconhecido e declarado. Vamos lembrar o
que foi o primeiro discurso do Fernando Henrique na campanha
presidencial de 1994. Foi um
discurso radicalmente comprometido com a efetivao desses
direitos, e no se avanou em
rigorosamente nada. Nesses cinco anos no se alcanou nada no
campo de uma efetivao
de direitos econmicos, sociais, culturais etc. Ento, a
cidadania no se esgota no plano da
cidadania poltica. Ela tambm no se restringe aos direitos
sociais, econmicos, culturais,
at mesmo porque existe uma relao evidente entre cidadania
poltica e cidadania social, na
medida em que sem essas possibilidades de participao, de
canais de participao, a
reivindicao por esses direitos efetivos se torna mais difcil.
Ns
podemos ter uma situao rigorosamente populista, no pssimo
sentido da palavra, de
uma ausncia de canais de mediao, de intermediao, e
teremos ento um novo
salvador, um pai dos pobres, que vai atender
diretamente esses reclamos, os direitos
sociais, econmicos, culturais etc.
Ento
elas se completam, a cidadania poltica e a cidadania social. No
d para dizer que s
a garantia dos direitos sociais configura uma cidadania democrtica
porque falta a liberdade e
a autonomia para a participao, at mesmo para reivindicar
esses direitos. Assim como
tambm no d para defender s a participao para pessoas
que no tm o mnimo para
uma existncia digna como seres humanos.
SILVIO:- Deixa eu complicar um pouquinho, de fato,
eu me identifico com essas suas
definies, mas acho que ns estamos trabalhando no plano terico,
ainda que iluminado por
experincias como o oramento participativo, ou os mecanismos
de participao afirmados na
nova Constituio. O que ns vemos no processo histrico
recente no Brasil o que vrios de
nossos colegas chamam de desconstruo de direitos. Essas
reformas que encolhem a
previdncia, que retiram dinheiro das polticas sociais, ou aes
de Estado, como por exemplo
na primeira greve dos petroleiros do governo FHC, que bateram
firme na capacidade dos
trabalhadores de se organizarem e reivindicarem. Tudo isso leva
a dizer hoje em dia, no meu
modo de ver, que a cidadania est em perigo, e que a luta pela
construo da cidadania no
se opera s em condies institucionais favorveis. Mesmo
durante a ditadura havia a
necessidade da defesa dos direitos humanos e tudo mais. Nesse
cenrio, e eu tambm quero
saber se voc concorda com esse cenrio, o que a formao da
cidadania?
MARIA VICTRIA: - Ns podemos pensar a formao
para a cidadania num campo formal e
num campo informal. No campo informal, aquilo que a gente j
conhece, atravs dos
movimentos, das associaes, das ONGs , at mesmo dos
partidos polticos com os seus
programas de formao etc. E a formao no sentido mais
formal se d atravs do sistema
regular de ensino, atravs da escola, do ensino fundamental, do
ensino universitrio etc.
Ento essas duas modalidades, do ensino formal e
da formao fora dos mecanismos formais
de ensino, aliadas ao uso efetivo dos meios de comunicao de
massa, que so essas
possibilidades de se implementar programas de formao de
educao para a cidadania.
Eu no vejo como ser possvel trabalhar nessas
escolas e nessas instituies da sociedade
civil para uma educao para a cidadania sem um mnimo de
o aos meios de
comunicao de massa. Hoje ns sabemos que a grande educadora
do pas a Rede Globo,
que atinge a quase totalidade desse pas continental, e que
realmente a produtora de
smbolos culturais, difusora de valores, tem portanto um papel
altamente educativo.
Ento, as coisas esto muito ligadas, eu vejo uma
grande necessidade de atuar na escola
desde o ensino fundamental, tenho trabalhado com vrios alunos
na ps-graduao em
relao a esses programas, nas escolas pblicas
principalmente, mas no se descartam as
escolas privadas, e programas desse tipo na Universidade.
Acompanho tambm alguns
programas partidrios, que a meu ver tm um alcance mais
reduzido, porque o partido quer
formar o seu cidado. Quer dizer, o PT tem um programa de
formao poltica para formar o
qu? Para formar petista, e no necessariamente com uma
abertura, com uma pluralidade
maior etc.
Mas defendo radicalmente uma interveno nos
meios de comunicao de massa, no sentido
de um controle democrtico efetivo sobre a programao, e que
comea j com a poltica de
concesses, de canais de TV e de rdio, mas tambm na
abertura da participao direta da
cidadania nesses meios de comunicao, um direito que
chamado direito de antena.
SILVIO: - Direito de antena?
MARIA VICTRIA: - Direito de antena, que
existe, por exemplo, j com bastante xito na
Itlia, mas existe em outros pases tambm, eu conheo especficamente
a experincia
italiana. O direito de antena consiste em o poder constitudo,
relativo aos meios de
comunicao, que so essencialmente pblicos, concesses pblicas,
garantir um espao
para instituies representativas da sociedade civil, assim
como garante, por exemplo, o
famoso horrio gratuito para os partidos e candidatos no perodo
eleitoral e ao longo do ano.
SILVIO: - Mas ns temos, por exemplo, a TV Comunitria,
a TV Legislativa, a TV da
Universidade... so experincias ainda incipientes, mas que
esto alterando...
MARIA VICTRIA: - Essas iniciativas so
extremamente importantes, e eu acho que isso
deve ser ampliado, e que no precisa necessariamente estar
vinculado a um canal, que exista
mesmo na TV aberta, no sentido de se garantir esse tempo, e que,
por exemplo, a TV Globo
tenha que ter esse tempo, que a nica que avana em todo o
territrio nacional. O Brasil
no tem o, na imensa maioria dos seus municpios, TV
Comunitria, nem TV
Legislativa, nem sequer TV Educativa e TV Cultura. Ento
ns defendemos, como o
caso de outros pases europeus, esse direito de antena,
inclusive nos grandes canais da TV
aberta. Isso seria o qu? Isso seria um canal aberto para
entidades representativas da
sociedade, por exemplo, para as centrais sindicais, para
confederaes de ONGs, para
federaes por exemplo como movimento de mulheres, movimentos
de conscincia negra,
movimentos de defesa dos ndios, movimentos de todo tipo se
manifestarem.
Esses
movimentos, de minorias em geral, precisam ter o
regulamentado como o horrio
gratuito para candidatos e partidos, tomando como justificativa
o prprio princpio
democrtico, no sentido de que no apenas a representao
tradicional que garante essa
essncia democrtica da representao.
SILVIO: - Voc falou da necessidade da questo da
democracia e da cidadania estarem
presentes nos currculos escolares normais, voc falou do
direito de antena, tem algum
outro aspecto que voc acha importante ressaltar na idia da
formao da cidadania?
MARIA VICTRIA: - Bem, os meios de comunicao
de massa num sentido amplo, incluindo a
imprensa, tm um papel pedaggico importante, e isso deve ser
enfatizado, deve ser
garantido. Mas a formao para a cidadania precisa se dar tambm
no ensino formal e nas
entidades da sociedade civil. E precisam contar com a participao
das ONGs, dos sindicatos,
dos partidos. O trabalho nas escolas no precisa
necessariamente estar segmentado num
determinado currculo.
SILVIO: - No uma Moral e Cvica?
MARIA VICTRIA: - No uma Moral e Cvica.
uma formao que comea pela formao
dos professores. No necessariamente um programa de aulas
que sero dadas aos alunos
de uma determinada disciplina. Ser o que ns chamamos de um
tema transversal, uma
formao que dada aos professores independentemente de sua
rea de ensino.
Durante muito tempo se sups que essa era uma rea,
como voc falou, de Moral e Cvica,
que caberia aos professores de Histria, aos professores de
Geografia, aos professores de
Portugus no mximo. E ns estamos perfeitamente convencidos
de que essa formao
cidad pode se
dividir entre as mais variadas reas de ensino, um professor de
Matemtica
pode estar perfeitamente formado nessa rea de cidadania e
democracia na medida em que
ele vai pautar o seu relacionamento com os alunos e o seu tipo
de insero na escola por
aqueles valores da cidadania e da democracia.
Eu digo que essa formao para a cidadania um
problema muito difcil, porque se trata de
uma argumentao que no apenas do ponto de vista lgico,
cientfico, formal. uma
argumentao que a pela tica, pela persuaso, pelo
convencimento, ou seja, pela
conquista dos coraes e mentes. No d para fazer um
trabalho desses s com um
currculo, com textos que os professores de Histria ou
Portugus vo trabalhar.
SILVIO: - Maria Victria, em vrias oportunidades
voc falou assim: formao para
democracia e formao para cidadania, a mesma
coisa?
MARIA VICTRIA: - Olha, a mesma coisa. por
isso que eu estou sempre me referindo
cidadania democrtica. E volto ao primeiro ponto que voc
levantou no incio da nossa
conversa, como voc diz que cidadania virou uma palavra que
usada a torto e a direito,
s vezes muito mais a torto do que a direito, quase como uma
capa protetora para todo o
tipo de interveno do poder pblico, e inclusive nas suas vrias
modalidades de cooptao e
manipulao. Eu costumo lembrar, na minha rea especfica da
Educao, como, ao
analisarmos todos os programas de atuao da Secretaria de
Educao do municpio de So
Paulo, por exemplo, todos,
sem rigorosamente nenhuma exceo, todos tm como
objetivo
precpuo uma formao
para a cidadania. Ento, isso aparece com Paulo Maluf, com
Erundina
, com Mrio Covas, com Celso Pitta, quer dizer, no mnimo
estranho que pessoas com
atuaes polticas e com princpios ideolgicos to
diferenciados usem a mesma expresso
para designar o objetivo principal, o objetivo essencial da sua
gesto frente de uma
Secretaria de Educao.
A idia de cidadania certamente no ser a mesma
para gestores to diferenciados, at
mesmo em relao ao que comumente se apresenta como uma idia
democrtica mais ampla.
Ento eu me refiro especificamente cidadania democrtica,
lembrando tambm que essa
idia de participao, de mobilizao do cidado, esteve
sempre a servio dos regimes
autoritrios e mesmo totalitrios. Os regimes totalitrios
foram amplamente mobilizadores, o
cidado era um cidado total, quer dizer que nascia e morria
nas mos do Estado. Mussolini
dizia: Tomo o indivduo ao nascer e s o largo na morte.
O Estado controlava toda a
atividade e toda a participao do cidado, que era
extremamente mobilizado com eatas,
atravs dos smbolos mais variados, desde cnticos a roupas,
a bandeiras, a participao
com eventos de massa etc. Tanto o regime nazista, quanto o
regime fascista, nas suas
vrias encarnaes, foram extremamente mobilizadores dessa
participao de um tipo de
cidado.
SILVIO:- Mas ento, qual a diferena?
MARIA VICTRIA: - Ento, a cidadania democrtica
outra. A cidadania democrtica, e eu
insisto nisso, aquela que realmente se apoia nos pilares da
democracia que so a liberdade
e a igualdade. Eu diria at mais, a liberdade, a igualdade e a
solidariedade, para repetir o
mote da Revoluo sa. Essa liberdade que recupera todo o
processo de garantia dos
direitos individuais e das liberdades pblicas, a igualdade no
sentido do reconhecimento da
igualdade intrnseca de todos os seres humanos em relao aos
direitos fundamentais para
um vida digna e a solidariedade no sentido de que a sociedade
esse slido que deve estar
interligado por laos de apoio, de convivncia etc. Isso
descartando de cara as lideranas
autoritrias, carismticas, os mais variados tipos de
cezarismos que levam uma
participao, mas uma participao controlada, sem liberdade
etc.
SILVIO: - Bom, ento ns estamos dialogando com
as bandeiras da Revoluo sa?
No avanamos?
MARIA VICTRIA: - No avanamos. Porque a Revoluo
sa no chegou aqui at
hoje, no ? Ns ainda estamos tributrios longnquos dos
ideais da Revoluo sa, que
permanecem extremamente atuais.
SILVIO: - Ns temos um problema, que a questo
da desinformao. Muito do que se faz,
vamos dizer assim, como apropriao privada dos bens pblicos,
do espao pblico, se faz
porque os indivduos esto desinformados e no tm canais
para se manifestar. Eu queria
perguntar para voc: todo indivduo j um cidado, ou ele
se torna um cidado? Hannah
Arendt fala alguma coisa assim, que o indivduo s se torna um
cidado quando ele participa e
atua no espao pblico. O Chico de Oliveira j diz que no tem mais isso,
porque a televiso,
o pblico, entrou dentro do privado. Como para voc essa questo?
A formao para a
cidadania tem pr-condies? O indivduo tem que adquirir
alguma capacidade para se
transformar em cidado ou no?
MARIA VICTRIA: - Bom, ento vamos fazer uma distino entre
cidadania ativa e cidadania
iva. Todos so cidados ivos porque todos, numa
determinada sociedade, esto
sujeitos interveno e sano de uma ordem jurdica.
Todos so cidados ivos
garantidos por uma determinada constituio que atribui
deveres e direitos. Todos so
cidados ivos a partir da idade civil de responsabilidade.
Eles s se tornaro cidados
ativos quando efetivamente assumirem uma responsabilidade em
relao a essa participao nas esferas de poder,
tanto para participar de processos decisrios, como para se
organizar
na reivindicao de direitos sociais, econmicos, culturais.
Ento, o indivduo realmente
constri essa sua condio, ele se torna um cidado ativo, e
essa cidadania est ligada
tambm a uma pr-condio, que a da responsabilidade
civil.
Por exemplo, eu costumo fazer uma diferena entre
direitos humanos e direitos de cidadania,
no sentido de que direitos humanos abrange todos os seres
humanos sem nenhuma distino.
As crianas tm direitos humanos, os deficientes
mentais tm direitos humanos, aqueles que
no so amplamente cidados pela constituio, como os ndios,
os apenados, todos
eles
continuam tendo direitos humanos fundamentais, mas no tm
direitos de cidado.
essa responsabilidade civil que vai garantir os
direitos do cidado. Ento, aquele que no
eleitor, no um cidado a parte inteira, aquele que
no tem o direito de ir e vir, que est
apenado, que est preso, ele no tem tambm a completude
de seus direitos de cidado, o mesmo caso
do doente mental, que irresponsvel etc. Mas todos
tero sempre o amparo dos direitos humanos
fundamentais. Eu acho graa quando se fala; a cidadania
das crianas...Eu entendo que seja uma
palavra mobilizadora para chamar a ateno para os
direitos das crianas, mas no se pode falar
que esta criana seja um cidado, no sentido
dessa responsabilidade civil. Ento essa palavra uma
palavra-chave como pr-condio para a cidadania,
assumir responsabilidade. De certa maneira, de uma
maneira empolada, ns poderamos dizer que
a cidadania ativa assumir essa responsabilidade para
se tornar um sujeito histrico, um sujeito
responsvel pela sua histria.
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