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O Amor Acaba Paulo Mendes Campos 651m49

Depoimento 521m28

Uma vez eu estava em Londres numa sala comum da classe mdia inglesa: a lareira acesa, todo mundo com sua taa de ch, a famlia imersa naquela naturalidade (chega a parecer representao) com que os ingleses aceitam a vida. Os ingleses, diz o poeta Pessoa, nasceram para existir!

A certa altura, um garoto de uns dez anos comeou a contar uma histria de rua, animou-se e comeou a gesticular. S comecei a perceber o que se ava quando notei que aquele doce sorriso mecnico, estampado em cada rosto de todas as pessoas da famlia, sumiu de repente, como se uma queda de voltagem interior houvesse afetado o sorriso coletivo. Olhos de av, me, tias e tios concentraram-se em silncio sobre o menino que continuava a narrativa com uma inocncia maravilhosa. Diante disso, uma das senhoras falou para ele com uma voz sem inflexo: Desde quando a gente precisa usar as mos para conversar?

Vi deliciado o garoto recolher as mos e se esforar para transmitir o seu conto com o auxlio exclusivo das palavras. O sorriso doce de todos iluminou de novo a sala: a educao britnica estava salva.

Mas minha atitude diante do problema da educao continuava se afogando. Realmente, pensei, no precisamos das mos para conversar; ora, se a gente obriga uma criana a abrir mo da mmica, a exprimir-se exclusivamente por palavras, essa criana aperfeioar sua capacidade verbal. Perfeito. Uma meta educacional foi atingida. Os ingleses sabem.

Mas mudemos o ambiente geogrfico do problema. Imaginemos um garoto italiano de dez anos que fosse coartado pela famlia em seus gestos meridionais. Seria uma crueldade, uma afetao pedaggica, uma amputao social.

Da, cheguei pela milsima vez mesma concluso que me espera no fim das reflexes desse gnero: os ingleses educam seus filhos para que eles venham a ser ingleses, os italianos, para que sejam italianos.

Em outras palavras: no existe Educao, mas uma atmosfera educacional. Melhor seguir instintivamente as sugestes desse ambiente, certas ou erradas, do que procurar estabelecer normas de educao intocveis, universais. O erro grosseiro deixar menino ingls comportar-se como italiano ou forar o italianinho a comportar-se como ingls.

A reflexo pode parecer (e deve ser) irrelevante, mas base de todas as idias que me faltam sobre educao. Nunca cheguei a pensar nada sobre a educao. Nunca concordei extensivamente com nenhum autor ou nenhum amigo a respeito de educao. Nunca tive opinies sobre educao, principalmente de filhos meus.

Minha perplexidade comea exatamente no que deve ser o ponto de partida da certeza dos outros: s podemos educar para alguma coisa; dado um objetivo, procuramos fornecer criana os meios de atingir esse objetivo.

Por exemplo: decido que meu filho deve estudar piano; contrato-lhe um certo nmero de aulas por semana, obrigo-lhe a um certo tempo de exerccios dirios, mas o caso que eu no posso decidir que meu filho deve estudar piano. Por que estudar piano? De duas, uma: se sou eu que gostaria que ele estudasse piano, o problema meu e no dele, nada tenho a ver com educao; mas se eu acho que seria bom que ele estudasse piano, tenho de responder honestamente s seguintes questes: Por qu? Para qu? Para ser um concertista? Um concertista mais ou menos ou o melhor do mundo? Para facilitar sua vida social?

Caso eu no responda a essas perguntas com convico, estou blefando; e mesmo que as responda, no poderei nunca ter a certeza de que meu filho gostar de ser o melhor concertista do mundo ou de tocar um pianinho para divertir os presentes. Volto assim minha patetice inicial: quando decido que meu filho deve estudar piano (ou ingls, sociologia, matemtica) no tenho a menor certeza de que estou a educ-lo; apenas transfiro para ele ansiedades minhas ou idias convencionais de minha classe.

Ora, diro que educar no impor obrigaes mas captar as aspiraes da criana. Se isso fosse uma verdade absoluta, os colgios andariam vazios e as praias cheias de crianas da manh noite. ito, no entanto, que uma criana chegue para os pais e pea para estudar piano com a maior seriedade; neste caso, ela mesma que se educa, que escolhe, certa ou errada, um caminho.

Minha perplexidade portanto a seguinte: que s podemos educar uma criana para que ela atinja um objetivo fora de dvida; a dvida esta: desconheo os objetivos que devam ser atingidos. Sei que se vive e morre, mas desconheo os objetivos da vida; desconhecendo os objetivos da vida, desconheo os objetivos da educao. Para se viver e morrer, a educao desnecessria.

Para quem acredita em Deus, no h problema; para quem acredita em dinheiro, no h problema. Mas eu no acredito nem em Deus nem em dinheiro. Logo, no posso educar meu filho para a eternidade ou para a segurana material. Se acreditasse que a finalidade da vida fosse o prazer, ou a arte, ou o poder, ou a obedincia, ou o sacrifcio, poderia educar meu filho. Faltando-me essas convices, me perco.

Seria fcil dizer, com uma irresponsabilidade total, que o fim da educao a sabedoria, a sagesse. Mas, que a sabedoria? S os sbios sabem, e os que am por sbios, os que se recolhem desde o incio da civilizao s solides escarpadas, dizem justamente que a sabedoria aquilo que no se pode transmitir.

Julian Huxley, um racionalista de boa vontade, conta que presenciou uma prtica impressionante numa tribo primitiva: as mes esfregavam as criancinhas nas pessoas de fora da famlia, a fim de que os recm-nascidos se acostumassem a aceitar o prximo. O cientista lamentava que essa tentativa de criar praticamente o amor ao semelhante fosse um exerccio exclusivo daqueles selvagens. O lamento implica uma nostalgia da sociedade utpica. No seria muito difcil fazer um santo de laboratrio; mas eu no iria condicionar meu filho para o amor e a bondade e depois solt-lo numa selva de asfalto. Na frase de Machado de Assis, o nico consolo de levar uma cruz ao Calvrio ser crucificado nela mas seramos monstruosos se fssemos educar para a cruz.

A criana de hoje viver no mundo violento de amanh, de ontem, de sempre. Para mim, o melhor ainda no educ-la, isto , deixar que a sociedade a amolgue com seus vcios, seu furor, seu egosmo. Ela, a criana, responder ao desafio. Se somos mentira, hipocrisia, preconceito, amor, medo, fraternidade, coragem e covardia, melhor deixar que a criana se cozinhe e tempere nesse caldeiro absurdo. por medo que educamos, no por amor; por conveno que educamos, no por entendimento.

S espero que tambm a meus filhos ocorra a mesma certeza que me mantm vivo: no existe nada, a no ser que a justia e o amor sejam alguma coisa.

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