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A
democracia representativa e a democracia participativa
426v1l
ando
por Locke e Rousseau, o prefeito de Porto Alegre discute as
origens e a crise do sistema representativo e mostra como
liberalismo no sinnimo de democracia.
Raul
Pont* 2q3s71
O
tema central deste seminrio est presente no debate poltico
da humanidade h, no mnimo, dois sculos. As razes dos
sistemas polticos de representao encontram-se nos regimes
constitucionais dos Estados Modernos. Os regimes polticos
antigos e medievais, por existirem em sociedades escravocratas ou
servis, no podem ser identificados com as situaes
inauguradas com o Estado Moderno. Mesmo com o Absolutismo, onde a
idia de contrato j aparece e o sdito j
portador de certos direitos, sua condio ainda distante da
qualificao de cidado.
As
origens dos sistemas representativos nascem de concepes
liberais que expressavam o desenvolvimento e amadurecimento das
sociedades mercantis e das condies objetivas para o surgimento
do capitalismo a acumulao de capitais e a existncia do
trabalho livre.
Esse
processo no foi linear, nem simultneo, na Europa ou no Novo
Mundo. As contradies e conflitos sociais que permearam o
surgimento do modo de produo capitalista se expressaram
atravs das vrias correntes tericas.
Simplificadamente,
para efeito desta apresentao, podemos reduzir a duas grandes
vertentes ideolgicas o pensamento burgus que justifica a
necessidade do Estado e o legitima. Ambas partem do direito
natural do homem liberdade e da crtica ao Estado absolutista.
Este justifica sua existncia pelo direito divino das monarquias
ou pelo contrato atravs do qual os homens para sarem
do permanente estado de guerra em que, naturalmente, se
encontravam , abdicavam da sua soberania e a transferiam de
forma absoluta a um rei. Esta era, para os absolutistas, a nica
condio pela qual os homens poderiam viver em harmonia: todos
abdicavam de sua soberania para um Estado todo poderoso que, pelo
temor e poder coercitivo, garantia a paz e a vida em sociedade.
Os
dois liberalismos k3s1d
A
primeira dessa vertentes, a concepo liberal proprietria,
possessiva, marca o pensamento de John Locke (1632-1704) que
critica o Absolutismo no por seu carter contratual (que j
aparecia na obra anterior de Thomas Hobbes), mas pela
justificativa do direito divino no qual os monarcas
buscavam justificar seu poder absoluto. O direito natural para
Locke o direito liberdade que, junto com o trabalho,
sustenta o direito a propriedade: o Estado tem como objetivo
defend-la. E mais: esta deve ser a funo essencial do Estado
sob controle de representantes delegados com o direito de fazer as
leis e aplic-las.
A
outra vertente a concepo liberal igualitria de Jean
Rousseau (1712-1778). Para ele, o contrato social pressupe a
idia do direito natural liberdade, mas tambm da igualdade
como condio humana.
Esta
introduo no , pois, uma divagao terica. Ela busca
situar as origens do nosso debate sobnre a delegao de poder e
permite que compreendamos que este no um debate recente,
constituindo-se h sculos num desafio para a humanidade.
As
diferentes explicaes tericas e ideolgicas desse processo
expressam interesses sociais distintos ao longo da histria e
tem, at hoje, conseqncias diferentes no desenvolvimento
poltico da humanidade. Este debate expressa interesses distintos
de classes e fraes de classe na agem de uma sociedade de
pequenos produtores, artesos e agricultores saindo do jugo
feudal, para a consolidao de uma nova elite dominante
tipicamente capitalista. Ele d a dimenso histrica de que
estas concepes respondem a um momento da humanidade e que no
so eternas, como no o foram as explicaes de mundo do
feudalismo ou da transio absolutista. So relaes da
sociedade e do Estado que podem ser alteradas pelo protagonismo
dos agentes histricos.
Isso
valeu para essa poca e vale, evidentemente, para os dias de
hoje. A concepo proprietria baseava-se na idia de que o
direito liberdade o direito propriedade. O Estado o
contrato para garantir a manunteno da propriedade e de
outros direitos.
Nesta
concepo sobre o Estado de Direito, tanto em Locke como nas
formulaes de Kant (1724-1804) pressupe-se cidados com
direitos desiguais em funo da propriedade, cidados
independentes e cidados no independentes. A estes, por sua
condio de despossudos, de no proprietrios, no se
poderia conceder o direito do voto, o direito representao
no poder de Estado, de preferncia parlamentar.
Locke,
apesar de sua viso laica e da defesa da tolerncia numa poca
de intransigncias confessionais, via o Estado (a sociedade
poltica que resulta do contrato) como o que expressa a
soberania, o poder coercitivo do Estado, inclusive o de condenar
morte!
O
liberalismo igualitrio de Rousseau 2v73c
n
A
outra concepo, o liberalismo igualitrio de Rousseau,
baseava-se na viso de que os homens nascem livres e
iguais, ainda que ele tambm constatasse que, em sua poca,
em todas as partes encontravam-se sob ferros.
Se
a frase traa a realidade do mundo em que vivia, onde os homens
j no nasciam livres e iguais, como desejava o pensamento
de Rousseau, esta fundamentao riqussima para expressar
seu pensamento baseado na pequena produo e no artesanato, a
realidade das pequenas localidades e/ou regies que rapidamente
comeava ser superada pela acumulao capitalista.
Essa
realidade vivida pelo autor foi suficientemente forte para que ele
defendesse que a soberania do povo, formado por indivduos
livres e iguais no poderia ser transferida por
necessidade e opo a um monarca como queriam os absolutistas,
nem poderia ser delegada, no contrato, ao Estado
Parlamentar.
Dizia
Rousseau que ao ato no qual se realiza o contrato da sociedade
poltica, onde o povo convenciona um governo, existe um
momento anterior que aquele em que o povo povo e esta
condio a condio primeira, estabelecendo uma soberania
que no pode ser transferida, delegada ou dividida.
Para
que se mantenham as condies de liberdade e igualdade, onde
nenhum cidado perde sua soberania no processo de formao da vontade
geral, esta no pode ser delegada ou transferida, a no ser
para encarregados de execut-la, cujos mandatos devem ser
revogveis a qualquer momento.
A
concepo utpica de Rousseau era irreal em um mundo que
rapidamente se transformava com a acumulao de capitais, mas
prenunciava o grande desafio para qualquer avano democrtico no
interior das concepes liberais.
n
Liberalismo
no sinnimo de democracia 5x584x
A
partir destas grandes vertentes desdobraram-se, ao longo destes
quase dois sculos, sistemas polticos representativos com
caractersticas prprias, com diferenciaes, mas alicerados
predominantemente na viso do liberalismo proprietrio,
possessivo. Desdobraram-se nas formas de repblicas ou monarquias
constitucionais parlamentares onde a soberania popular delegada ao
Parlamento unifica as funes legislativas e executivas a partir
das relaes de foras no interior da instituio.
Expressaram-se, tambm, nas repblicas presidencialistas onde a
diviso de poderes e competncias mais ntida e onde
Executivo e Legislativo so eleitos por critrios distintos.
Nessa
longa experincia histrica dos pases liberais, j temos um
elemento de debate e troca de informaes em nosso seminrio:
os sistemas eleitorais. Estes tambm expressaram diferentes
estgios de desenvolvimento econmico e graus distintos na
organizao poltica das classes e fraes de classes na
disputa nde espaos e representaes dentro do sistema liberal.
Mas,
principalmente, esse processo histrico deu visibilidade
cristalina ao fato de que o liberalismo, ao longo desses dois
sculos, no foi e no sinnimo de democracia.
Dependendo
do pas, no sculo ado e mesmo neste, o direito
organizao poltico-partidria e ao sufrgio universal foram
conquistas duramente alcanadas. Ao longo do liberalismo, o
exerccio do voto foi elitista, excludente ou limitador: o voto
censitrio baseado na propriedade e/ou nos impostos dominou o
sculo XIX.
No
Brasil-Imprio excluam-se os negros escravos, os ndigenas, as
mulheres, os pobres, enfim, a maioria esmagadora da populao
situao que se prolongou pelas primeiras dcadas do
sculo XX. Afinal, todos estes no poderiam ser cidados
independentes, como pensavam Locke e Kant, o que beneficiava a
n oligarquia fundiria.
As
lutas sociais pelo direito a sindicalizao, ao partido
poltico e a universalizao do voto complementavam, assim, as
lutas pela jornada e pelas condies de trabalho.
O
socialismo e a crtica da representao 562t56
As
novas contradies, os novos conflitos, as novas relaes de
classe produziram novas concepes poltico-ideolgicas de
explicao do mundo e das relaes entre a Sociedade e o
Estado. Ao par de reivindicaes e conquistas sociais
desenvolve-se uma nova concepo de mundo: o pensamento
socialista.
Este,
tambm, no unvoco, mas na concepo marxista faz a
crtica da concepo liberal, anfirmando de forma
esquemtica o carter de classe do Estado, sua relao e
subordinao aos interesses predominantes na sociedade na esfera
da produo.
A
igualdade do Estado de Direito no ultraa a igualdade
jurdica do cidado e apenas tenta esconder a enorme
desigualdade presente na sociedade civil em funo da
propriedade privada dos meios de produo.
Afora
a condio insubstituvel de que o socialismo requer a
superao da sociedade de classes e, portanto, do fim da
propriedade privada, o marxismo no desenvolveu uma concepo
de Estado socialista, no sentido de teorizar sobre novas
instituies e sobre como seriam as relaes polticas na
nova sociedade.
Foram
experincias concretas como a vivida pela Comuna de Paris (1871)
e depois pela Revoluo Russa (1917) que permitiram
sistematizaes tericas e propnostas que retomaram o problema
da representao poltica, da delegao de poder.
A
curtssima vida da Comuna, sufocada aps pouco mais de dois
meses, no permitiu as classes populares que a impulsionaram
desenvolver um novo tipo de Estado. Mas a procuraram, ao menos,
constituir novas relaes polticas onde predominavam
critrios para diminuir delegaes de poder, ampliar a
revogabilidade dos mandatos, desconstituir as foras armadas
substituindo-as por cidados armados e diminuir diferenas de
remunerao entre os servidores pblicos, visando no criar
privilgios e favorecer burocracias.
A
vitria da Revoluo Russa inaugurou uma nova etapa na
histria da humanidade; ela propunha-se a constituir as
relaes polticas de um novo Estado, cuja grande pretenso e
objetivo era, tambm, auto-extinguir-se junto com o fim da
sociedade de classes.
nO
governo baseado em conselhos (sovietes) que retomava o velho
tema da delegao de poder propunha-se a superar a
mera igualdade jurdica e a distncia do poder poltico da
maioria da populao. Atravs dos conselhos (sovietes)
almejava-se fundirem numa s pessoa o produtor e legislador.
A
experincia sovitica no sobreviveu a guerra civil e ao
processo de autoritarismo e burocratizao que prevaleceu na
luta interna na Unio Sovitica. O partido nico e a
identificao deste com o Estado centralizador e todo poderoso
afastou a possibilidade do fortalecimento da auto-gesto, da
auto-organizao e do controle democrtico de um Estado
planificador apenas das coisas e no um instrumento de
dominao de classe, das gentes.
O
socialismo real do leste europeu e da China e seus
seguidores menores sufocaram este debate no campo da esquerda ao
longo do sculo e o longo predomnio das experincias
social-democratas ou de democracias burguesas liberais consolidou
a democracia representativa como pice do avano poltico da
humanidade.
O
brilho foi ofuscado, certamente, pelo rosrio de ditaduras
militares e de autoritarismo populista que se sucederam na
Amrica, frica e sia. Mesmo a Europa no escapou inclume,
confirmando que o sculo XX ainda no seria o sculo da
civilizao.
Nas
ltimas dcadas, o fim da guerra fria, o colapso das
experincias do leste europeu e a falncia da doutrina da
segurana nacional na Amrica Latina, consolidaram a
democracia representativa em um grande nmero de pases. Nos
casos em que substituiram ditaduras, elas constituiram importantes
nas conquistas polticas dessas sociedades.
A
crise de legitimidade do sistema de representao
,
inegvel, entretanto, que na maioria dos pases de democracia
liberal, o sistema de representao vive um processo de crise de
legitimidade, que se expressa na absteno eleitoral, na apatia
e no participao poltico-social e nos baixos ndices de
filiao partidria.
As
causas variam entre os diferentes pases mas se pode afirmar que
as principais residem:
-
no processo de burocratizao e no carter autoritrio das
istraes e parlamentares;
-
na falta de controle dos eleitores e/ou do partido sobre os
eleitos;
-
nos sistemas eleitorais que distorcem a representao, fraudando
a vontade popular, atravs dos mecanismos distritais e/ou
barreiras e obstculos para partidos pequenos;
-
na falta de coerncia entre o projeto e o programa eleitoral e a
prtica dos eleitos;
n
-
nas trocas partidrias sem perda de mandato, onde o Brasil deve
ser recordista mundial, resguardados pela lei;
-
na incapacidade desses sistemas garantirem a reproduo do
capitalismo com legitimidade frente a evidncia dele ser
reprodutor da desigualdade e da explorao sociais.
Nossa
experincia de democracia participativa 5q526l
Neste
quadro que nossa experincia de onze anos de democracia
participativa, em Porto Alegre, adquire sentido e importncia.
Sem desconhecer os limites das experincias locais e de que nossa
prtica precisa estar inserida num projeto maior, que pense o
pas dentro de uma nova concepo de mundo, no cabe cruzar os
braos e esperar que todos os problemas tericos e estratgicos
estejam resolvidos para podermos atuar. Afinal, como diz Eduardo
Galeano, a utopia, mesmo quando parece afastar-se tem como
funo nos obrigar a caminhar para alcan-la.
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Nesta
ltima dcada, construmos, governo e movimento popular, uma
rica experincia participativa. Ela tem seu centro no Oramento
pblico, o elemento mais importante, mas no o nico, em uma
gesto municipal. Certamente, o grau de compreenso e
conscincia diferenciado entre os participantes, mas quem vive
essa prtica dificilmente no adquire outra viso do Estado, de
seu funcionamento e do seu carter. O que importa, porm, do
nosso ponto de vista que na prtica desenvolvida ressaltam
experincias que compem ou tem a potencialidade de compor um
projeto maior que venha retomar o velho dilema de como construir e
garantir uma democracia conscientizadora e transformadora de si
mesma.
No
pretendo retomar a dinmica e os mecanismos de funcionamento
dessa experincia. Suas plenrias regionais e temticas, sua
organizao a partir de um Regimento Interno produzido pelos
participantes e que se aperfeioou ao longo da dcada de 90,
foram objeto do primeiro deste seminrio. Nosso objetivo,
neste momento, tentar refazer o elo de uma experincia
concreta com esse debate terico anterior sobre a democracia
representativa e participativa.
n
Um
mtodo de atuao poltica e6mv
Para
ns, essa questo essencialmente programtica,
constituindo-se numa reflexo e numa prtica do campo poltico
democrtico-popular, que as foras e partidos socialistas
pretendem representar. A questo democrtica central em
qualquer processo de resistncia e superao ao neoliberalismo
predominante. A democracia participativa, por seu potencial
mobilizador e conscientizador, permite aos cidados desvendar o
Estado, ger-lo e estabelecer um efeito demonstrao para
outros setores da sociedade traduzirem este mtodo para suas
esferas da luta poltica e da competncia istrativa. Nosso
objetivo estabelecer a ligao entre as questes
terico-programticas e nosso mtodo de construo de uma
experincia de democracia participativa em seus elementos
constitutivos.
Assim,
as principais caractersticas da nossa experincia podem ser
resumidas emn alguns aspectos suscetveis de servirem de
referncia e de mtodo, independente do conhecimento
insubstituvel de cada realidade, para outras experincias.
A
primeira delas a participao popular, direta ou
indiretamente, como no caso de Porto Alegre onde a participao
direta no Oramento Participativo, regional e temtica,
no contraditria com uma rede de conselhos municipais
formados por representantes de entidades e associaes que
tambm influenciam, fortemente, nas polticas pblicas.
A
segunda caracterstica a prtica direta, a ao
insubstituvel dos cidados nas reunies, discusses e
momentos de conhecimento dos dados, para que as pessoas se
apropriem dos elementos necessrios para decidir, formem
comisses de controle, de fiscalizao e tenham o espao para
a cobrana e a crtica. Quanto mais isto for feito diretamente,
sem transferir para outros, sejam eles lderes comunitrios,
sindicais ou vereadores, maior e mais rpido ser o avano da
conscincia democrtica.
A
terceira caracterstica da nossa experincia a auto-organizao,
expressa na auto-regulamentao construda e decidida pelos
prprios participantes num saudvel exerccio de soberania
popular que no fique sempre a merc de leis e decretos
decididos por outros. A experincia da auto-regulamentao foi
riqussima, incorporando critrios que vinham da prpria
prtica desenvolvida, como por exemplo, conselheiros com
delegao imperativa e substituio ou revogao dos
mandatos quando conselheiros ou suplentes abandonam ou no
cumprem as funes assumidas.
Da
mesma forma, a experincia e o debate entre os participantes
levou-os a estabelecer tambm que funcionrios da
istrao com cargos de confiana do governo no poderiam
ser conselheiros a no ser que renunciassem a esta situao.
O
regulamento incorporou, igualmente, critrios de
proporcionalidade quando a comunidade no encontra consenso e a
disputa envolve vrinos candidatos a condio de conselheiro,
bem como o esprito de solidariedade na hora de definir
variveis (populao, carncia de equipamentos pblicos) para
hierarquizar obras e servios.
Ao
concluir, quero reafirmar que a nossa experincia no uma
receita ou um modelo de exportao, mas uma prtica que se soma
a outras e com as quais queremos dialogar e aprender na busca de
novos caminhos para nossas comunidades.
Nossa
convico funda-se no processo histrico que nos ensina que
no h verdades eternas e absolutas nas relaes entre a
sociedade e o Estado. Estas se fazem e se refazem pelo
protagonismo dos seres sociais. A busca de uma democracia
substantiva, participante, regida por princpios ticos de
liberdade e igualdade social continua sendo nosso horizonte
histrico e nossa utopia para a humanidade. Obrigado.
*Raul
Pont prefeito de Porto Alegre (RS)
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