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Barbrie
e modernidade no sculo 20
Michael Lwy* 28262r
A
palavra brbaro de origem grega. Ela designava, na Antigidade,
as naes no-gregas, consideradas primitivas, incultas,
atrasadas e brutais. A oposio entre civilizao e barbrie
ento antiga. Ela encontra uma nova legitimidade na filosofia
dos iluministas, e ser herdada pela esquerda. O termo barbrie
tem, segundo o dicionrio
, dois significados distintos, mas
ligados: falta de civilizao e crueldade de brbaro.
A histria do sculo 20 nos obriga a dissociar essas duas acepes
e a refletir sobre o conceito aparentemente contraditrio,
mas de fato perfeitamente coerente de barbrie
civilizada.
Em
que consiste o processo civilizador? Como bem demonstrou
Norbert Elias, um de seus aspectos mais importantes que a violncia
no mais exercida de maneira espontnea, irracional e
emocional pelos indivduos, mas monopolizada e centralizada
pelo Estado, mais precisamente, pelas foras armadas e pela polcia.
Graas ao processo civilizador, as emoes so controladas, o
caminho da sociedade pacificado e a coero fsica fica
concentrada nas mos do poder poltico.
O que Elias no parece ter percebido o reverso dessa brilhante
medalha: o formidvel potencial de violncia acumulado pelo
Estado... Inspirado por uma filosofia otimista do progresso, ele
podia escrever, ainda em 1939: Comparada ao furor do combate
abissnio (...) ou daquelas tribos da poca das grandes migraes,
a agressividade das naes mais belicosas do mundo civilizado
parece moderada (...); ela s se manifesta em sua fora brutal e
sem limites em sonho e em alguns fenmenos qu
e ns qualificamos
de patolgicos.
Alguns
meses depois dessas linhas terem sido escritas, comeava uma
guerra entre naes civilizadas cuja fora brutal e
sem limites simplesmente impossvel de comparar com o pobre
furor dos combatentes etopes, tamanha a desproporo.
O lado sinistro do processo civilizador e da monopolizao
estatal da violncia se manifestou em toda sua terrvel potncia.
Se
ns nos referimos ao segundo sentido da palavra brbaro
atos cruis, desumanos, a produo deliberada de sofrimento
e a morte deliberada de no-combatentes (em particular, crianas)
nenhum sculo na histria conheceu manifestaes de barbrie
to extensas, to massivas e to sistemticas quanto o sculo
XX. Certamente, a histria humana rica em atos brbaros,
cometidos tanto pelas naes civilizadas quanto pelas
tribos selvagens. A histria moderna, depois da conquista
das Amricas, parece uma sucesso de atos desse gnero: o
massacre de indgenas das Amricas
, o trfico negreiro, as
guerras coloniais. Trata-se de uma barbrie civilizada,
isto , conduzida pelos imprios coloniais economicamente mais
avanados.
Karl
Marx era um dos crticos mais ferozes desses tipos de prticas
malficas e destruidoras da modernidade, que para ele esto
associadas s necessidades de acumulao do capital. Em O
Capital, especialmente no captulo sobre a acumulao
primitiva, encontra-se uma crtica radical dos horrores da expanso
colonial: a escravizao ou o extermnio dos indgenas, as
guerras de conquista, o trfico de negros. Essas barbries e
atrocidades execrveis que segundo Marx (citando de modo
favorvel M.W. Howitt) no tm paralelo em qualquer outra
era da histria universal, em nenhuma raa por mais selvagem,
grosseira, impiedosa e sem pudor que ela tenha sido no
foram simplesmente adas aos lucros e perdas do progresso histrico,
mas devidamente denunciadas como uma infmia.
Considerando algumas das manifestaes mais sinistras do
capitalismo, como as leis dos pobres ou os workhouses
estas bastilhas de operrios , Marx escreveu em 1847
esta agem surpreendente e proftica, que parece anunciar a
Escola de Frankfurt: A barbrie reapareceu, mas desta vez ela
engendrada no prprio seio da civilizao e parte
integrante dela. a barbrie leprosa, a barbrie como lepra da
civilizao.
Mas
com o sculo XX, um limite transgredido, a-se a um nvel
superior; a diferena qualitativa. Trata-se de uma barbrie
especificamente moderna, do ponto de vista de seu etos, de
sua ideologia, de seus meios, de sua estrutura. Ns voltaremos a
esse ponto.
A
Primeira Guerra Mundial inaugurou esse novo estgio da barbrie
civilizada. Dois autores, os primeiros, soaram o sinal de alarme,
em 1914-15: Roxa Luxemburgo e Franz Kafka. Apesar de suas
evidentes diferenas, eles tm em comum o fato de terem tido a
intuio cada um sua maneira de alguma coisa sem
precedente que estava para se constituir no curso daquela guerra.
Ao
usar a palavra de ordem socialismo ou barbrie, Rosa
Luxemburgo em A crise da social-democracia, de 1915
(assinada com o pseudnimo Junius), rompeu com a concepo
de origem burguesa, mas adotada pela Segunda Internacional
da histria como progresso irresistvel, inevitvel,
garantido pelas leis objetivas do desenvolvimento econmico
ou da evoluo social. Essa palavra de ordem sugerida por
certos textos de Marx ou de Engels, mas Rosa Luxemburgo que d
a ela essa formulao explcita e elaborada. Ela implica uma
percepo da histria como processo aberto, como srie de
bifurcaes, onde o fator subjetivo conscincia,
organizao, iniciativa dos oprimidos tornam-se decisivos. No
se trata mais de esperar que o fruto amadurea, segundo as
leis naturais da economia ou da histria, mas de agir antes
que seja tarde demais.
Porque
o outro lado da alternativa um sinistro perigo: a barbrie. Em
um primeiro momento ela parece considerar a recada na barbrie
como a aniquilao da civilizao, uma decadncia anloga
quela da Roma antiga.
Mas logo ela se d conta que no se trata de uma impossvel
regresso a um ado tribal, prim
itivo ou selvagem,
mas antes, de uma barbrie eminentemente moderna, da qual a
Primeira Guerra Mundial d um exemplo surpreendente, bem pior em
sua desumanidade assassina que as prticas guerreiras dos
conquistadores brbaros do fim do Imprio Romano. Jamais
no ado tecnologias to modernas os tanques, o gs, a
aviao militar tinham sido colocadas ao servio de uma poltica
imperialista de massacre e de agresso em uma escala to imensa.
As
intuies de Kafka so de uma natureza totalmente diferente.
sob a forma literria e imaginria que ele descreve a nova barbrie.
Trata-se de uma novela intitulada A colnia penal: em uma
colnia sa, um soldado indgena condenado
morte por oficiais cuja doutrina jurdica resume em poucas
palavras a quintessncia do arbitrrio: a culpabilidade no
deve jamais ser colocada em dvida!. Sua execuo deve ser
cumprida por uma mquina de tortura que escreve lentamente sobre
seu corpo com agulhas que o atravessam a frase Honra teus
superiores.
O
personagem central da novela no nem o viajante que observa os
acontecimentos com uma ho
stilidade muda, nem o prisioneiro, que no
reage de modo nenhum, nem o oficial que preside a execuo, nem
o comandante da colnia. a mquina mesma.
Toda
a narrativa gira em torno desse sinistro aparelho (Apparat),
que parece mais e mais, no curso da explicao detalhada que o
oficial d ao viajante, como um fim em si mesmo. O Aparelho no
est l para executar o homem, sobretudo este que est l
pelo Aparelho, para fornecer um corpo sobre o qual ele possa
escrever sua obra-prima esttica, sua inscrio sangrenta
ilustrada de muitos florilgios e ornamentos. O oficial
mesmo apenas um servidor da Mquina e, finalmente, ele mesmo
se sacrifica esse insacivel Moloch6.
Em
que mquina de poder brbara, em que aparelho da
autoridade sacrificador de vidas humanas, pensava Kafka? A
colnia penal foi escrita em outubro de 1914, trs meses aps
a ecloso da grande guerra. H poucos textos na literatura
universal que apresentam de maneira to penetrante a lgica m
ortfera
da barbrie moderna como mecanismo impessoal.
Esses
pressentimentos parecem se perder nos anos do ps-guerra. Walter
Benjamin um dos raros pensadores marxistas a compreender que o
progresso tcnico e industrial pode ser portador de catstrofes
sem precedentes. Da seu pessimismo no fatalista, mas ativo
e revolucionrio. Em um artigo de 1929 ele definia a poltica
revolucionria como a organizao do pessimismo um
pessimismo em todas as linhas: desconfiana quanto ao destino da
liberdade, desconfiana quanto ao destino do povo europeu. E
acrescenta ironicamente: confiana ilimitada somente no IG
Farben e no aperfeioamento pacfico da Luftwaffe.
Ora, mesmo Benjamin, o mais pessimista de todos, no podia
adivinhar a que ponto essas duas instituies iriam mostrar,
alguns anos mais tarde, a capacidade malfica e destrutiva da
modernidade.
Pode-se
definir como propriamente moderna a barbrie que apresenta as
seguintes caractersticas:
-
Utilizao de meios tcnicos modernos. Industrializao do
homicdio. Exterminao em massa graas s tecnologias cientficas
de ponta.
-
Impessoalidade do massacre. Populaes inteiras homens e
mulheres, crianas e idosos so eliminados, com o
menor contato pessoal possvel entre quem toma a deciso e as vtimas.
-
Gesto burocrtica, istrativa, eficaz, planificada,
racional (em termos instrumentais) dos atos brbaros.
-
Ideologia legitimadora do tipo moderno: biolgica
, higinica,
cientfica (e no religiosa ou tradicionalista)
-
Todos os crimes contra a humanidade, genocdios e massacres do sculo
XX no so modernos no mesmo grau: o genocdio dos armnios em
1915, o genocdio levado a cabo pelo Pol Pot no Camboja, aquele
dos tutsis em Ruanda etc. associam, cada um de maneira especfica,
traos modernos e traos arcaicos.
Os
quatro massacres que encarnam de maneira mais acabada a
modernidade da barbrie so o genocdio nazista contra os
judeus e os ciganos, a bomba atmica em Hiroshima, o Goulag
estalinista e a guerra norte-americana no Vietn. Os dois
primeiros so provavelmente os mais integralmente modernos: as cmaras
de gs nazistas e a morte atmica norte-americana contm
praticamente todos os ingredientes da barbrie tecno-burocrata
moderna.
Auschwitz
representa a modernidade no somente pela sua estrutura de fbrica
de morte, cientificamente organizada e que utiliza as tcnicas
mais eficazes. O genocdio dos judeus e dos ciganos tambm,
como observa o socilogo Zygmunt Bauman, um produto tpico da
cultura racional burocrtica, que elimina da gesto
istrativa toda interferncia moral. Ele , deste ponto de
vista, um dos possveis resultados do processo civilizador como
racionalizao e centralizao da violncia e como produo
social da indiferena moral. Como toda outra ao conduzida
de maneira moderna racional, planificada, cientificamente
informada, gerida de forma eficaz e coordenada o Holocausto
deixou para trs todos seus pretensos equivalentes pr-modernos,
revelando-os em comparao como primitivos, esbanjadores e
ineficazes. (...) Ele se eleva muito acima dos episdios de genocdio
do ado, da mesma forma que a fbrica industrial moderna est
bem acima da oficina artesanal....
A
ideologia legitimadora do genocdio ela tambm de tipo
moderno, pseudo-cientfico, biolgico, antropomtrico,
eugenista. A utilizao obsessiva de frmulas pseudo-medicinais
caracterstica do discurso anti-semita dos dirigentes
nazistas, o que pode ser notado nas conversaes privadas d
eles.
Numa carta a Himmler em 1942, Adolf Hitler insistia: A batalha
na qual ns estamos engajados hoje do mesmo tipo que a batalha
liderada, no sculo ado, por Pasteur e Koch. Quantas doenas
no tiveram sua origem no vrus judeu... Ns no encontraremos
nossa sade sem eliminar os judeus.
Em
seu notvel ensaio sobre Auschwitz, Enzo Traverso destaca,
com palavras sbrias, precisas e lcidas, o contexto do genocdio.
No se trata nem de uma simples resistncia irracional
modernizao, nem de um resduo de barbrie antiga, mas de
uma manifestao patolgica da modernidade, do rosto escondido,
infernal, da civilizao ocidental, de uma barbrie industrial,
tecnolgica, racional (do ponto de vista instrumental).
Tanto a motivao decisiva do genocdio a biologia racial
quanto suas formas de realizao as cmaras de gs
eram perfeitamente modernas. Se a racionalidade instrumental no
basta para explicar Auschwitz, ela sua condio necessria e
indispensvel. Encontra-se nos meios de exterminao nazistas
uma combinao de diferentes instituies tpicas da
modernidade: ao mesmo tem
po, a priso descrita por Foucault, a fbrica
capitalista da qual falava Marx, a organizao cientfica do
trabalho de Taylor, a istrao racional/burocrtica
segundo Max Weber.
Este
ltimo tinha intudo, como sublinha Marcuse, a transformao
da razo ocidental em fora destrutiva. Sua anlise da
burocracia como mquina desumanizada, impessoal, sem amor
nem paixo, indiferente a tudo aquilo que no sua tarefa hierrquica,
essencial para compreender a lgica reificada dos campos da
morte. Isso vale tambm para a fbrica capitalista, que estava
presente em Auschwitz, ao mesmo tempo nas oficinas de trabalho
escravo da empresa IG Farben e nas cmaras gs, lugares de
produo em cadeia de mortos. Mas a soluo final
irredutvel toda lgica econmica: a morte no nem
uma mercadoria, nem uma fonte de lucro.
Traverso
critica, de maneira muito convincente, as interpretaes
inspiradas, em um grau ou outro, pela ideologia do progresso
do nazismo e do genocdio como produto da histria do
irracionalismo alemo (Georges Lukcs), de uma sada da
Alemanha para fora do bero ocidenta
l (Jrgen Habermas) ou de um
movimento de descivilizao (Entzivilisierung)
inspirado por uma ideologia pr-industrial (Norbert Elias).
Se o processo civilizador significa, antes de tudo, a monopolizao
pelo estado da violncia como o mostram, depois de Hobbes,
tanto Weber quanto Elias necessrio reconhecer que a violncia
do Estado est na origem de todos os genocdios do sculo XX.
Auschwitz no representa uma regresso em direo ao
ado, em direo a uma idade brbara primordial, mas
realmente um dos rostos possveis da civilizao industrial
ocidental. Ele constitui ao mesmo tempo uma ruptura com a herana
humanista e universalista dos Iluministas e um exemplo terrvel
das potencialidades negativas e destrutivas de nossa civilizao.
Se
o extermnio dos judeus pelo Terceiro Reich comparvel a
outros atos brbaros, nem por isso ele deixa de ser um evento
singular. necessrio recusar as interpretaes que eliminam
as diferenas entre Auschwitz e os campos soviticos, ou os
massacres coloniais, os pogroms etc..
O crime de guerra que tem mais afinidades com Auschwitz
Hiroshima, como compreenderam to bem Gnther Anders e Dwight
MacDonald: nos dois casos delega-se a tarefa a uma mquina de
mor
te formidavelmente moderna, tecnolgica e racional. Mas
as diferenas so fundamentais. Inicialmente, as autoridades
americanas no tiveram jamais como objetivo como aquelas do
Terceiro Reich realizar o genocdio de toda uma populao:
no caso das cidades japonesas, o massacre no era, como nos
campos nazistas, um fim em si mesmo, mas um simples meio
para atingir objetivos polticos. O objetivo da bomba atmica no
era o extermnio da populao japonesa como fim autnomo.
Tratava-se sobretudo de acelerar o fim da guerra e demonstrar a
supremacia militar americana face Unio Sovitica. Em um
relatrio secreto de maio de 1945 ao presidente Truman, o Target
Committee o Comit de Alvo, composto pelos generais
Groves, Norstadt e do matemtico Von Neumann observa
friamente: A morte e a destruio iro no somente
intimidar os japoneses sobreviventes a fazer presso pela
capitulao mas tambm (a bnus) assustar a Unio Sovitica.
Em sntese, a Amrica poderia terminar mais rapidamente a guerra
e, ao mesmo tempo, ajudar moldar o mundo do ps-guerra13.
Para obter esses objetivos polticos, a cincia e a tecnologia
mais avanadas foram utilizadas e centenas de milhares de civis
inocentes, homens, mulheres e crianas foram massacrados sem
falar da contaminao pela irradiao nuclear das geraes
futuras.
Uma
outra diferena com Auschwitz , sem dvida, o nmero bem
inferior de vtimas. Mas a comparao das duas formas de barbrie
burocrtico-militar muito pertinente. Os prprios dirigentes
americanos estavam conscientes do paralelo com os crimes nazistas:
em uma conversa com Truman no dia 6 de junho de 1945, o secretrio
de Estado, Stimson, relatava seus sentimentos: Eu disse a ele
que estava inquieto com esse aspecto da guerra... porque eu no
queria que os americanos ganhassem a reputao de ultraar
Hitler em atrocidade.
Em
muitos aspectos, Hiroshima representa um nvel superior de
modernidade, tanto pela novidade cientfica e tecnolgica
representada pela arma atmica, quanto pelo carter ainda mais
distante, impessoal, puramente tcnico do ato exterminador:
pressionar um boto, abrir a escotilha que liberta a carga
nuclear. No contexto prprio e assptico da morte atmica
entregue pela via area, deixou-se para trs certas formas
manifestamente arcaicas do Terceiro Reich, como as exploses de
crueldade, o sadismo e a fria assassina dos oficiais da SS. Essa
modernidade se encontra na cpula norte-americana que toma
aps
ter cuidadosa e racionalmente pesado os prs e os contras
a deciso de exterminar a populao de Hiroshima e Nagasaki:
um organograma burocrtico complexo composto por cientistas,
generais, tcnicos, funcionrios e polticos to cinzentos
quanto Harry Truman, em contraste com os os de dio
irracional de Adolf Hitler e seus fanticos.
No
curso dos debates que precederam a deciso de lanar a bomba,
certos oficiais, como o general Marshall, declararam suas
reservas, medida em que eles defendiam o antigo cdigo
militar, a concepo tradicional da guerra, que no itia o
massacre intencional de civis. Eles foram vencidos por um ponto de
vista novo, mais moderno, fascinado pela novidade cientfica
e tcnica da arma atmica, um ponto de vista que no tinha nada
a ver com cdigos militares arcaicos e que no se interessava
seno pelo clculo de lucros e perdas, isto , em critrios de
eficcia poltico-militar.
Seria necessrio acrescentar que um certo nmero de cientistas
que tinham participado, por convico anti-fascista, nos
trabalhos de preparao da arma atmica, protestaram contra a
utilizao de suas descobertas contra a populao civil das
cidades japonesas.
p>
Uma
palavra sobre o Goulag estalinista: se h muito em comum com
Auschwitz sistema concentracionrio, regime totalitrio,
milhes de vtimas ele se distingue pelo fato que o objetivo
dos campos soviticos no era o extermnio dos prisioneiros mas
sua explorao brutal como fora de trabalho escrava. Em outras
palavras: pode-se comparar Kolyma e Buchenwald, mas no o Goulag
e Treblinka. Nenhuma contabilidade macabra como aquela
fabricada por Stphane Courtois e outros anticomunistas
profissionais pode apagar essa diferena.
O
Goulag era uma forma de barbrie moderna na medida em que era
burocraticamente istrado por um Estado totalitrio e
colocado ao servio de projetos estalinistas faranicos de
modernizao econmica da Unio Sovitica. Mas ele se
caracteriza tambm por traos mais primitivos: corrupo,
ineficcia, arbitrariedade, irracionalidade. Ele se situa
por essa razo em um degrau de modernidade inferior ao sistema
concentracionrio do Terceiro Reich.
Enfim,
a guerra americana no Vietn, atroz pelo nmero de vtimas
civis exterminadas pelos bombardeios, o napalm ou as execues
coletivas, constitui, em vrios aspectos, uma interveno
extremamente moderna: fundada sobre uma planificao
racional com a utilizao de computadores, e de um exrcito
de especialistas ela mobiliza um armamento muito sofisticado,
na ponta do progresso tcnico dos anos 60 e 70: B-52, napalm,
herbicidas, bombas fragmentao etc.
Essa
guerra no foi um conflito colonial como os outros: bastava
lembrar que a quantidade de bombas e explosivos lanados sobre o
Vietn foi superior quela utilizada por todos os beligerantes
durante a Segunda Guerra Mundial! Como no caso de Hiroshima, o
massacre no era um objetivo em si, mas um meio poltico; e se a
cifra de mortos bem superior quela das duas cidades
japonesas, no se encontra no Vietn aquela perfeio da
modernidade tcnica e impessoal, aquela abstrao cientfica
da morte que caracteriza a morte atmica.
A
natureza contraditria do progresso e da civilizao
moderna se encontra no corao das reflexes da Escola de
Frankfurt. Em Dialtica do Iluminismo (1944), Adorno e
Horkheimer constatam a tendncia da racionalidade instrumental de
se transformar em loucura assassina: a luminosidade gelada
da razo calculista carrega a semente da barbrie. Em uma
nota redigida em 1945 para Minima Moralia, Adorno utiliza a
expresso progresso regressivo tentando de dar conta da
natureza paradoxal da civilizao moderna.
Entretanto,
essas expresses ainda so tributrias, apesar de tudo, da
filosofia do progresso. Na verdade, Auschwitz e Hiroshima no so
em nada uma regresso barbrie ou mesmo uma
regresso: no h nada no ado que seja comparvel
produo industrial, cientfica, annima e racionalmente
istrada da morte em nossa poca. Basta comparar Auschwitz e
Hiroshima com as prticas guerreiras das tribos brbaras do sculo
IV para se dar conta que
eles no tm nada em comum: a diferena
no somente na escala, mas na natureza. possvel comparar
as prticas mais ferozes dos selvagens morte
ritual do prisioneiro de guerra, canibalismo, reduo das cabeas
etc. com uma cmara de gs ou uma bomba atmica? So fenmenos
inteiramente novos, que no seriam possveis a no ser no sculo
XX.
As
atrocidades de massa, tecnologicamente aperfeioadas e
burocraticamente organizadas, pertencem unicamente nossa
civilizao industrial avanada. Auschwitz e Hiroshima no so
mais regresses: so crimes irremediavelmente e
exclusivamente modernos.
Existe
entretanto um domnio especfico da barbrie civilizada
em que se pode efetivamente falar de regresso: a tortura. Como
destaca Eric Hobsbawn em seu irvel ensaio de 1994, Barbrie:
um guia para o usurio: A partir de 1782 a tortura foi
formalmente eliminada do procedimento judicirio dos pases
civilizados. Em teoria, ela no era mais tolerada nos aparelhos
coercitivos do Estado. O preconceito contra essa prtica era to
forte que ela no pde retornar aps a derrota da Revoluo
sa que a havia seguramente abolido (...) Pode-se suspeitar
que nos redutos da barbrie tradicional, que resistem ao
progresso moral por exemplo as prises militares ou outras
instituies anlogas ela de fato no desapareceu...
Ora, no sculo XX, sob o fascismo e o estalinismo, nas guerras
coloniais Arglia, Irlanda etc. e nas ditaduras
latino-americanas, a tortura de novo empregada em grande escala.
Os
mtodos so diferentes a eletricidade substitui o fogo e os
torniquetes mas a tortura de prisioneiros polticos
tornou-se, no curso do sculo XX, uma prtica rotineira
mesmo se no-oficial de regimes totalitrios, ditatoriais, e
mesmo, em certos casos (as guerras coloniais), democrticos.
Nesse caso, o termo regresso pertinente, na medida em
que a tortura era praticada em inmeras sociedades pr-modernas,
e tambm na Europa, da Idade Mdia at o sculo XVIII. Um uso
brbaro que o processo civilizador parecia ter suprimido no curso
do sculo XIX voltou no sculo XX, sob uma forma mais
moderna do ponto de vista das tcnicas mas no
menos desumana.
Levar
em conta a barbrie moderna do sculo XX exige o abandono da
ideologia do progresso linear. Isso no quer dizer que o
progresso tcnico e cientfico intrinsecamente portador de
malefcio nem tampouco o inverso. Simplesmente, a barbrie
uma das manifestaes possveis da civilizao
industrial/capitalista moderna ou de sua cpia
socialista burocrtica.
No
se trata tambm de reduzir a histria do sculo XX a seus
momentos brbaros: essa histria conheceu tambm a esperana,
as sublevaes dos oprimidos, as solidariedades internacionais,
os combates revolucionrios: Mxico, 1914; Petrogrado, 1917;
Budapeste, 1919; Barcelona, 1936; Paris, 1944; Budapeste, 1956;
Havana, 1961; Paris, 1968; Lisboa, 1974; Mangua, 1979; Chiapas,
1994; foram alguns dos momentos fortes mesmo se efmeros
dessa dimenso emancipadora do sculo. Eles constituem pontos de
apoio preciosos luta das geraes futuras por uma sociedade
humana e solidria. (Traduo: Alessandra Ceregatti)
K. Marx, Arbeitslohn,
1847, Kleine konomische Schriften, Berlin, Dietz
Verlag, 1955, p.245.
*
Michael Lwy, brasileiro, socilogo,
pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa Cientfica (CNRS)
da Frana e autor, entre outros, de Revolta de Melancolia:
o romantismo na contra-mo da modernidade.
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