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4i2947

Nosso prximo programa: Oxmoro!

Num mundo em que a barbrie tornou-se quotidiana, preciso reconhecer a responsabilidade dos intelectuais que resistem. Depende da ao deles saber se o protesto se esgotar em denncia sem perspectiva ou, ao contrrio, levar formao de novos atores sociais e, indiretamente, a novas polticas econmicas e sociais

Subcomandante Marcos

44e4t

Para a figura denominada oxmoro, aplica-se a uma

palavra um epteto que parece contradiz-la;

assim os gnsticos falaro de uma luz escura;

os alquimistas, de um sol negro..

Jorge Luis Borges 5s4d3c

ADVERTNCIA, INTRODUO E PROMESSA 3k2n4h

Ateno: se voc no leu a epgrafe, bom que o faa agora, porque pode no entender algumas coisas. Um fato irrefutvel: a globalizao est aqui. No a qualifico ainda, simplesmente assinalo uma realidade. Porm, posto que oxmoro, preciso assinalar que se trata de uma globalizao fragmentada.

A globalizao foi possvel, entre outras coisas, por duas revolues: a tecnolgica e a da informtica. Foi e ser dirigida pelo poder financeiro. Juntas, a tecnologia e a informtica (e com elas o capital financeiro) diminuram distncias e romperam fronteiras. Hoje possvel ter informaes sobre qualquer parte do mundo, a qualquer momento e de forma simultnea. Mas tambm o dinheiro tem agora o dom da ubiqidade, move-se de maneira vertiginosa, como se estivesse em todas as partes ao mesmo tempo. E mais, o dinheiro d uma nova forma ao mundo, a forma de um mercado, de um mega-mercado.

No entanto, apesar da globalizao do planeta, ou melhor, precisamente por ela, a homogeneidade est longe de ser a caracterstica desta troca de sculo e milnio. O mundo um arquiplago, um quebra-cabeas cujas peas se tornam outros quebra-cabeas e a nica coisa realmente globalizada a proliferao do heterogneo.

Se a tecnologia e a informtica esto unindo o mundo, o poder financeiro utiliza-as como armas, como armas em uma guerra. Antes havamos dito (o texto se chama Sete peas soltas no quebra-cabeas mundial, EZLN, 1997) que na globalizao trava-se uma guerra mundial, a quarta, e que se desenvolve um processo de destruio/despovoamento e reconstruo/reordenamento (estou tentando resumir apressadamente, sejam benevolentes) em todo o planeta. Para a construo da nova ordem mundial (planetria, permanente, imediata e imaterial, segundo Ignacio Ramonet), o poder financeiro conquista territrios e derruba fronteiras, e o consegue fazendo a guerra, uma nova guerra. Uma das baixas desta guerra o mercado nacional, base fundamental do Estado-Nacional. Este ltimo est em vias de extino, ou ao menos o Estado-Nacional tradicional. Em seu lugar surgem mercados integrados ou, melhor, lojas de departamentos do grande shopping mundial, o mercado globalizado.

As conseqncias polticas e sociais desta globalizao constituem um oxmoro reiterado e completo: menos pessoas com mais riquezas, produzidas com a explorao de mais pessoas com menos riquezas, a pobreza do nosso sculo no comparvel a nenhuma outra. No , como j foi alguma vez, o resultado natural da escassez, mas o conjunto de prioridades impostas pelos ricos ao resto do mundo1; para uns poucos poderosos o planeta abriu-se cada vez mais; para milhes de pessoas o mundo no oferece lugar e elas vagam errantes de um lado para outro; o crime organizado forma a coluna vertebral dos sistemas jurdicos e dos governos (os ilegais fazem as leis e cuidam da ordem pblica; e a integrao mundial multiplica as fronteiras).

Deste modo, se ressaltarmos algumas das principais caractersticas da poca atual, diramos: supremacia do poder financeiro, revoluo tecnolgica e informtica, guerra, destruio/despovoamento e reconstruo/reordenamento, ataques aos Estados Nacionais, a conseqente redefinio do poder e da poltica, o mercado como figura hegemnica que permeia todos os aspectos da vida humana em todas as partes, maior concentrao de riqueza em poucas mos, maior distribuio de pobreza, aumento da explorao e do desemprego, milhes de pessoas sem-teto, delinqentes que integram o governo, desintegrao de territrios. Em resumo: globalizao fragmentada.

Bem, segundo esta considerao, no caso dos intelectuais (haja vista que tm a ver com a sociedade, o poder e o Estado) cabe perguntar: esto padecendo do mesmo processo de destruio/despovoamento e reconstruo/reordenamento? Que papel lhes atribui o poder financeiro? Como usam (ou so usados pelos) os avanos tecnolgicos e de informtica? Que posio tm nessa guerra? Como se relacionam com os combalidos Estados Nacionais? Qual o seu vnculo com esse poder e poltica? Que lugar tm no mercado? E como se posicionam frente s conseqncias polticas e sociais da globalizao? Em suma: como se inserem nesta globalizao fragmentada?

O mundo teria mudado por e para esta guerra. Se as coisas de fato so assim, os intelectuais clssicos no existiriam mais, nem suas antigas funes. Em seu lugar, uma nova gerao de cabeas pensantes (para usar um termo criado pelo comandante zapatista Tacho) teria emergido (ou est por emergir) e teriam novas funes em sua atividade intelectual.

Ainda que pretendamos aqui nos limitar aos intelectuais de direita, sero evidentes algumas observaes sobre os intelectuais em geral e sobre suas relaes com o poder. Como o propsito deste texto participar e alentar a polmica entre os intelectuais de direita e esquerda, fica aqui uma reflexo mais profunda (sobre os intelectuais e o poder, e sobre os intelectuais e a transformao) para futuro e improvveis escritos.

Saudaes, e tenha mo seu controle remoto. Em um momento comeamos

I -- A GLOBALIZAO: PAY PER VIEW 1a5b

Na pgina do calendrio, o ano dois mil est entre os sculos 20 e 21. No me parece to importante esta contagem de tempo, mas me parece que um momento adequando para que, por todos os lados, surjam oxmoros. Para no ir muito longe, poderia dizer que esta poca o princpio do fim ou o fim do princpio de algo. Algo, forma irresponsvel de eludir um problema. Porm j se sabe que nossa especialidade no a soluo de problemas, e sim sua criao. Sua criao? No, muito presunoso, melhor seria dizer sua proposio. Sim, nossa especialidade propor problemas. Tudo parece j ter acontecido antes, como um velho filme que se repete com outras imagens, outros recursos cinematogrficos, incluindo atores diferentes, mas com o mesmo roteiro. Como se a modernidade (ou a ps-modernidade, deixo a preciso para quem se d ao trabalho) da globalizao se vestisse com seu oxmoro e nos presenteasse com uma modernidade arcaica, ranosa e antiga.

Se isto que digo lhes parece mera apreciao subjetiva, atribua ao fato de estarmos na montanha, resistindo e em rebeldia, mas conceda-nos o privilgio da leitura e veja se trata-se de um sintoma a mais de mal de montanha, ou voc compartilha desta sensao de dej vu que flui pelo hipercinema que este mundo globalizado.

O mundo no quadrado, pelo menos isso o que nos ensinam na escola. Porm, no fio cortante da unio dos milnios, o mundo tambm no redondo. Ignoro qual seja a figura geomtrica adequada para representar a forma atual do mundo, mas, haja visto que estamos na poca da comunicao digital audiovisual, poderamos tentar defini-la como uma gigantesca tela. Voc pode agregar uma tela de televiso, ainda que eu prefira uma tela de cinema. No apenas por preferir o cinema, tambm (e acima de tudo) porque me parece que h na nossa frente uma pelcula, uma velha pelcula, modernamente velha (para seguir com oxmoro).

, alm disso, uma dessas telas onde se pode programar a apresentao simultnea de vrias imagens (picture in picture, a chamam). No caso do mundo globalizado, de imagens que se sucedem em qualquer rinco do planeta. Mas ali no esto todas as imagens. E no por falta de espao na tela, mas porque algum selecionou estas imagens e no outras. Quer dizer, estamos vendo uma tela com diversos quadros que apresentam imagens simultneas -- de diferentes partes do mundo, certo --, mas nem todo o mundo est ali.

Ao chegar neste ponto, a gente se pergunta, inevitavelmente, quem tem o controle remoto desta tela audiovisual? E quem faz a programao? Boas perguntas, mas voc no encontrar aqui estas respostas. E no apenas porque no as temos de cincia certa, mas tambm porque no so o tema deste texto.

Posto que no podemos trocar de canal no cinema, vejamos alguns dos diferentes quadros que nos oferece a mega tela da globalizao.

Vamos ao continente americano. L voc tem, num quadro, a imagem da Universidade Nacional Autnoma do Mxico (UNAM) ocupada por um grupo paramilitar do governo: a chamada Polcia Federal Preventiva. No parece que estes homens de uniforme cinza estejam estudando. Mais adiante,demarcada pelas montanhas do sudeste mexicano, uma coluna de tanques blindados cinzas cruza uma comunidade indgena do Chiapas. Do outro lado, a imagem cinza apresenta um policial norte-americano que detm, com uma violncia requintada, um jovem em um lugar que pode ser Seatlle ou Washington.

No quadro europeu proliferam tambm os cinzas. Na ustria, Joer Heider e seu fervor pr-nazi. Na Itlia, com a ajuda desinteressada de DAlema, Silvio Berlusconi arruma a gravata. No Estado Espanhol, Felipe Gonzles maquia o rosto de Jos Maria Aznar. Na Frana Le Pen quem nos sorri.

A sia, frica e Oceania apresentam a mesma cor, que se repete nos seus respectivos rinces.

Humm... tantos cinza... Humm... ns podemos protestar... depois de tudo, eles nos prometeram um programa multicor... Pelo menos, aumentemos o volume. Vamos tentar entender que isso ...

II. - UM ESQUECIMENTO MEMORVEL

Como a globalizao fragmentada, os intelectuais esto a, so uma realidade da sociedade moderna. E o estar a deles no se limita poca atual, remonta aos primeiros os da sociedade humana. Mas a arqueologia dos intelectuais escapa a nosso conhecimento e possibilidades, por isso partimos do fato de que esto a Em todo caso, o que nos propomos a descobrir a sua forma de estar a.

Os intelectuais enquanto categoria so algo muito vago, j se sabe. Diferente, por outro lado, definir a funo intelectual. A funo intelectual consiste em determinar criticamente o que se considera uma aproximao satisfatria do prprio conceito de verdade; e qualquer um pode desenvolv-la, inclusive um marginal que reflita de alguma forma sobre sua prpria condio e de alguma maneira a expresse, enquanto um escritor pode tra-la por reagir aos acontecimentos com paixo, sem impor o crivo da reflexo2.

Se assim, ento o trabalho intelectual , fundamentalmente, analtico e crtico. Frente a um fato social (para nos limitar a um universo), o intelectual analisa o evidente, o afirmativo e o negativo, buscando o ambguo, o que no nem uma coisa nem outra (embora assim se apresente) e mostra (comunica, desvenda, denuncia) no apenas o que no evidente, mas inclusive o que se contradiz ao evidente.

de se supor que as sociedades humanas tenham pessoas que se dediquem profissionalmente a esta anlise crtica e a comunicar seus resultados. Nas palavras de Norberto Bobbio: Os intelectuais so todos aqueles para os quais transmitir mensagens a ocupao habitual e consciente (...) e, falando de uma maneira que pode at parecer brutal, quase sempre representa a maneira de ganhar o po de cada dia. Fiquemos com esta aproximao ao intelectual, ao profissional da anlise crtica e da comunicao.

J havamos sido advertidos de que o intelectual nem sempre exerce a funo intelectual. A funo intelectual se exerce sempre com antecedncia (ao que pode acontecer) ou com atraso (sobre o que j aconteceu); raramente sobre o que est acontecendo, por razes de ritmo, porque os acontecimentos so sempre mais rpidos e urgentes que a reflexo sobre os acontecimentos3.

Por sua funo intelectual, este profissional da anlise crtica e sua comunicao seria uma espcie de conscincia incmoda e impertinente da sociedade (nesta poca da sociedade globalizada) em seu conjunto e de suas partes. Um inconformado com tudo, com as foras polticas e sociais, com o Estado, com o governo, com os meios de comunicao, com a cultura, com as artes, com a religio e mais o que o leitor quiser agregar. Se o ator social diz aqui est, o intelectual murmura, ctico: falta, ou sobra algo.


Teramos ento que o intelectual em seu papel um crtico da imobilidade, um promotor da mudana, um progressista. No entanto, este comunicador de idias crticas est inserido em uma sociedade polarizada, confrontada entre si mesma de muitas maneiras e com diferentes argumentos, mas dividida fundamentalmente entre os que usam o poder para que as coisas no mudem e os que lutam pela mudana. O intelectual deve, por um elementar sentido de ridculo, compreender que no lhe outorgado um papel de bruxo do esprito em torno do qual vai girar o ser ou no ser histrico, mas evidentemente ele tem conhecimentos (...) que pode alinhar em um ou outro sentido histrico. Pode alinhar na busca da elucidao das injustias presentes no mundo atual ou na cumplicidade com a paralisao e a instalao do Limbo.4

E aqui que o intelectual opta, elege, escolhe entre sua funo intelectual e a funo que lhe propem os atores sociais. Aparece assim a diviso (e a luta) entre intelectuais progressistas e reacionrios. Ambos seguem trabalhando com a comunicao de anlise crtica, mas enquanto os progressistas continuam na crtica da imobilidade, da permanncia, da hegemonia e do homogneo; os reacionrios desenvolvem a crtica mudana, ao movimento, rebelio, e diversidade. O intelectual reacionrio esquece sua funo intelectual, renuncia reflexo crtica e sua memria opera de modo que no exista ado ou futuro. O presente e o imediato so o nico tempo possvel e, por isso, inquestionvel.

Ao dizer intelectuais progressistas e reacionrios nos referimos aos intelectuais de esquerda e de direita. Aqui convm lembrar que o intelectual de esquerda exerce sua funo intelectual, ou seja, sua anlise crtica tambm frente esquerda (social, partidria, ideolgica), mas na poca atual sua crtica fundamentalmente dirigida ao poder hegemnico: o dos senhores do dinheiro e quem os representa no campo da poltica e das idias.

Deixemos agora os intelectuais progressistas e de esquerda, e vamos aos intelectuais reacionrios, a direita intelectual.

III -- O PRAGMATISMO INTELECTUAL 6x3l25

No princpio os gigantes intelectuais de direita foram progressistas. Falo dos grandes intelectuais de direita, os think tanks da reao, no dos anes que foram ingressando aos seus clubes pensantes. Octavio Paz, excelente poeta e ensasta, o maior intelectual de direita dos ltimos anos no Mxico, declarou: Venho do pensamento chamado de esquerda. Foi algo muito importante na minha formao. No sei agora...a nica coisa que sei que meu dilogo s vezes minha discusso com eles (os intelectuais de esquerda). No tenho muito para falar com os outros5. Casos como o de Paz se repetem pela mega tela global.

O intelectual progressista, enquanto comunicador de anlise crtica, se converte em objeto e objetivo para o poder dominante. Objeto a comprar e objetivo a destruir. Enormes recursos so mobilizados para as duas coisas. O intelectual progressista nasce em meio a este ambiente de seduo persecutria. Alguns resistem e se defendem (quase sempre sozinhos, a solidariedade entre grupos no parece ser a caracterstica do intelectual progressista), mas outros, talvez fatigados, vasculham sua bagagem de idias e tiram as que so ao mesmo tempo crtica e razo para legitimar o poder. O novo exige muito, o velho a est, sendo que basta usar o argumento de inevitvel para que lhe ofeream uma cmoda poltrona (s vezes em forma de bolsa de estudos, posio, prmio, espao) por conta do Prncipe antes to criticado.

O inevitvel tem nome hoje: globalizao fragmentada, pensamento nico -- isto , a traduo em termos ideolgicos e com pretenso universal dos interesses de um conjunto de foras econmicas, em particular as do capital internacional6. Fim da histria, onipresena e onipotncia do dinheiro, substituio da poltica pela polcia, o presente como nico futuro possvel, racionalizao da desigualdade social, justificao da sobre-explorao dos seres humanos e recursos naturais, racismo, intolerncia, guerra.

Em uma poca marcada por dois novos paradigmas, comunicao e mercado, o intelectual de direita (e o ex-esquerda) entende que ser moderno significa seguir o slogan: adaptam-se ou percam vossos privilegiados lugares!

No necessrio nem ser original, o intelectual de direita j tem o canteiro de onde haver de tirar as pedras que adornem a globalizao fragmentada: o pensamento nico. A assepsia no importa muito, o pensamento nico tem suas principais fontes no Banco Mundial, no Fundo Monetrio Internacional, na Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico, na Organizao Mundial do Comrcio, na Comisso Europia, no Bundesbank, no Banco da Frana que, mediante seu financiamento, alinham a servio de seus ideais, em todo o planeta, numerosos centros de investigao, universidades e fundaes, os quais, por sua vez,anunciam e difundem a boa nova7.

Com tal abundncia de recursos, fcil que floresam elites que h muitos anos, empenham-se a fundo em fazer o elogio ao pensamento nico; que exercem uma verdadeira chantagem contra toda reflexo crtica em nome da modernizao, do realismo, da responsabilidade e da razo; que afirmam o carter inevitvel da atual evoluo das coisas; que propem a capitulao intelectual, que condenam escurido irracional todos aqueles que se negam as aceitar que o estado natural da sociedade o mercado8.

Longe da reflexo, do pensamento crtico, os intelectuais de direita tornam-se pragmticos por excelncia, exilados da funo intelectual e transformados em ecos, mais ou menos estilizados, dos spots publicitrios que inundam o mega mercado da globalizao fragmentada.

Refuncionalizados na globalizao fragmentada, os intelectuais de direita modificam seu ser e adquirem novas "virtudes" (entre elas reaparece o oxmoro): uma audaz covardia e uma profunda banalidade. Ambas brilham em suas "anlises" do presente globalizado e suas contradies, suas revises do ado histrico, suas clarividncias. Podem dar-se ao luxo da audaz covardia e da profunda banalidade, j que a hegemonia universal quase absoluta do dinheiro os protege com torres de vidro blindado. Por isso, a direita intelectual particularmente sectria e tem, alm disso, o respaldo de no poucos meios de comunicao e governos. Ingressar nessas altas torres intelectuais no fcil, preciso renunciar imaginao crtica e autocrtica, inteligncia, argumentao, reflexo, e optar pela nova teologia: a teologia liberal.

Posto que a globalizao vende-se como o melhor dos mundos possveis, mas carece de exemplos concretos de vantagens para a humanidade, preciso recorrer tecnologia e substituir com dogmas e f neoliberal a falta de argumentos. O papel do telogo neoliberal inclui denunciar e perseguir os "hereges", os "mensageiros do mal", ou seja, os intelectuais de esquerda. E que melhor forma de combater os crticos que acus-los de "messianismo"?

Frente ao intelectual de esquerda, o de direita impe o rtulo lapidar de messianismo tresloucado. Quem pode questionar um presente pleno de liberdades, onde qualquer um pode decidir o que comprar, sejam artigos de primeira necessidade, ideologias, propostas polticas e comportamentos para qualquer ocasio?

Mas o paradoxo no perdoa. Se em algum lado h messianismo, na direita intelectual. "O Grande Circo de Intelectuais Neoliberais Quimicamente Puros ou Ex Marxistas Arrependidos ou a Trilateral pode ser messinico quando pressagia a fatalidade de um universo baseado em uma verdade nica, o mercado nico e o exrcito -- gendarme nico vigiando o brilho do flash que registra a foto final da Histria, disparado ante as melhores paisagens das melhores sociedades abertas.9

A foto final. O cenrio culminante do filme da globalizao.

IV- OS CLARIVIDENTES CEGOS

Parafraseando Rgis Debray , o problema aqui no por que ou como a globalizao irremedivel, mas sim por que ou com todo o mundo, ou quase, acredita que ela seja irremedivel. Uma resposta possvel: A tecnologia do fazer-crer (...) O poder da informao.. .Inf-formar:dar forma, formatar. Con-formar: dar conformidade. Trans-formar: modificar uma situao10.

Com a globalizao da economia, globaliza-se tambm a cultura. E a informao. Normal, portanto, que as grandes empresas de comunicao estendam sobre o mundo inteiro sua rede eletrnica sem que nada nem ningum as impea. Nem Ted Turner, da CNN; nem Rupert Murdoch, da News Corporation Limited; nem Bill Gates, da Microsoft; nem Jeffrey Vinik, da Fidelity Investments; nem Larry Rong, do China Trust and International Investment; nem Robert Allen, de ATT; assim como George Soros ou dezenas de outros novos amos do mundo, submeteram jamais seus projetos ao sufrgio universal11

Na globalizao fragmentada, as sociedades so fundamentalmente sociedades miditicas. As mdias so o grande espelho, no do que uma sociedade , mas do que deve aparentar. Plena de tautologias e evidncias, a sociedade miditica avara em razes e argumentos. Aqui, repetir demonstrar.

E o que se repete so as imagens, como estes cinzas que nos mostra agora a grande tela globalizada. Debray nos disse: A equao da era visual algo assim como: o visvel = o real = o verdadeiro. Eis aqui a idolatria revisitada (e sem dvida redefinida)12. Os intelectuais de direita tm aprendido bem sua lio. Mais, um dos dogmas de sua teologia.

Onde se deu o salto que iguala o visvel ao verdadeiro? Truques da tela globalizada.

O mundo inteiro, melhor ainda, o conhecimento inteiro est mo de qualquer um com uma televiso ou um computador porttil. Sim, mas no qualquer mundo e no qualquer conhecimento. Debray explica que o centro de gravidade das informaes foi deslocado do escrito para o audiovisual, do signo para a imagem. As vantagens para os intelectuais de direita (e as desvantagens para os progressistas) so bvias.

Analisando o comportamento da informao na Frana durante a guerra do Golfo Prsico, se revela o poder das mdias: no comeo do conflito, 70% dos ses mostravam-se hostis guerra; no final, a mesma porcentagem aprovava-a. Sob o bombardeio das mdias, a opinio pblica sa mudou e o governo obteve as vantagens por sua participao blica.

Estamos na "era visual". Assim, as informaes apresentam-se na evidncia de sua imediatez, portanto real o que nos mostrado, portanto verdadeiro o que vemos. No h lugar para a reflexo intelectual crtica, no mximo h espao para comentaristas que completem a leitura da imagem. O visual desta era no foi feito para ser visto, mas para oferecer "conhecimento". O mundo tornou-se uma mera representao multimdia, que omite o mundo exterior, capaz de ser conhecida na mesma medida em que vista. Sim, indcios do terceiro milnio, sculo XXI, e a filosofia flutuante em nosso mundo "moderno" o idealismo absoluto.

J se pode tirar algumas concluses: o novo intelectual de direita tem que desempenhar sua funo legitimadora na era visual; optar pelo direto e imediato; ar do signo imagem e da reflexo ao comentrio televisivo. Nem ao menos tem que se esforar para legitimar um sistema totalitrio, brutal, genocida, racista, intolerante e excludente. O mundo que objeto de sua funo intelectual o apresentado pelos meios de comunicao: uma representao virtual. Se no hipermercado da globalizao o Estado-Nacional se redefine como uma empresa, mais, os governantes como gerentes de vendas e os exrcitos e polcias em agncias de vigilncia, ento a direita intelectual faz o papel de relaes pblicas.

Em outras palavras, na globalizao, os intelectuais de direita so multiuso, coveiros da anlise crtica e da reflexo, ilusionistas nas rodas de moinho da teologia neoliberal, pontos de governos que esqueceram o script, comentaristas do evidente, instigadores de soldados e polcias, juizes gnsticos que separam em rtulos de verdadeiro e falso o que lhes convm. Guarda-costas tericos do Prncipe, e anunciadores da nova histria.



1 Jorge Berger. Cada vez que decimos adis. Ediciones de la flor. Argentina, 1977. Pgs. 278-279

2 Umberto Eco. Cinco escritos morales. Ed. Lumen. Traduo Helena Lozano Miralles. p. 14-15)

3 Umberto Eco. Op. Cit. P. 29.

4 Manuel Vzquez Montalbn. Panfleto desde el planeta de los simios. Ed. Drakontos. Barcelona 1995. p. 48

5 Braulio Peralta El poeta en su tierra. Dilogos con Octavio Paz. Ed. Grijalbo.

6 Ignacio Ramonet. Un mundo sin rumbo. Crisis de fin de siglo. Editorial Debate. Madrid.

7 Ignacio Ramonet. Op. Cit. P. 111.

8 Ibid. P. 114.

9 Manuel Vzquez Montalbn. Op. Cit. p. 47.

10 Regis Debray. Croire, Voir, Faire. Ed. Odile Jacob. Pars 1999. P. 193.

11 Ignacio Ramonet. Op. Cit. p. 109.

12 Rgis Debray. Op. Cit. P. 200.

V- O FUTURO ADO 195c6x

Queimar livros e erguer fortificaes tarefa comum dos prncipes, disse Jorge Luis Borges. E acrescenta que todo o prncipe quer que a histria comece a partir dele. Na era da globalizao fragmentada no se queimam livros (embora ergam-se fortificaes), eles apenas so substitudos. Mesmo desta maneira, mais que suprimir a histria, o prncipe neoliberal instrui seus intelectuais para que a refaam de maneira que o presente seja o fim dos tempos.

Os Maquiadores da Histria, assim Luis Hernndez Navarro intitulou um artigo dedicado ao debate com os intelectuais de direita no Mxico13. Alm de provocar o presente texto (escrito com a inteno de dar seguimento s suas posies), Hernndez Navarro adverte sobre uma nova ofensiva: a nova direita intelectual dirige suas baterias contra figuras representativas da intelectualidade progressista mexicana.Rentista tardia da tranqilidade planetria do pensamento nico, renegada de sua identidade, herdeira de papel ado da queda do muro de Berlim, scia e emuladora do circuito cultural conservador norte-americano, esta direita est convencida de que a crtica cultural outorga credenciais suficientes para emitir, sem argumentao, juzos sumrios a seus adversrios no terreno poltico.

As razes no-ideolgicas deste ataque devem ser buscadas na disputa pelo espao de credibilidade. No Mxico os intelectuais de esquerda tm grande influncia na cultura e na universidade. Estorvam, esse o seu delito.

Ou melhor, este um de seus delitos. Outro o apoio destes intelectuais progressistas luta zapatista por uma paz justa e digna, pelo reconhecimento dos direitos dos povos indgenas e pelo fim da guerra contra os ndios do pas. Este pecado no menor. "O levante zapatista inaugura uma nova etapa, a do comeo dos movimentos indgenas como atores da oposio globalizao neoliberal"14. No somos os melhores nem os nicos: a esto os indgenas do Equador e do Chile, os protestos em Seattle e Washington (e os que se sigam em ordem cronolgica, no em importncia) Mas somos uma das imagens que distorcem a mega tela da globalizao fragmentada e, como fenmeno social e histrico, demandamos reflexo e anlise crtica.

E a reflexo e a anlise crtica no esto no "arsenal" da direita intelectual. Como cantar as glrias da nova ordem mundial (e sua imposio no Mxico) se um grupo de indgenas "pr-modernos" no apenas desafia o poder, mas tambm conquista a simpatia de uma importante faixa dos intelectuais? Em conseqncia, o Prncipe ditou suas ordens: ataquem uns e outros, eu entro com o exrcito e os meios de comunicao, vocs, com as idias. Assim a nova direita intelectual dedicou zombarias e calnias a seus pares da esquerda. Aos indgenas rebeldes zapatistas, nos dedicou...uma nova histria.

E, enquanto o zapatismo teve impacto internacional, a direita intelectual, em vrias partes do mundo (no apenas no Mxico), dedicou-se a esta tarefa. Os intelectuais de direita no apenas maquiam a histria, refazem-na, reescrevem-na convenincia do Prncipe e maneira de sua funo intelectual.

Mas voltemos ao Mxico. "Ao longo deste sculo, os intelectuais no Mxico tm desempenhado funes diversas: cortesos de luxo do poder de turno, decorao do Estado, vozes dissidentes (que, para institucionalizar-se, so chamadas Conscincias Crticas), intrpretes privilegiados da histria e da sociedade, espetculos em si mesmos15.????A???u??/span>/font>

O ltimo grande intelectual de direita no Mxico, Octavio Paz, cumpriu cabalmente o trabalho encomendado pelo Prncipe. No economizou palavras para desprestigiar os zapatistas e quem mostrasse simpatia por sua causa (ateno: no por sua forma de luta). Uma das melhores mostras de Paz a servio do Prncipe est em seus textos e declaraes do incio de 1994. Ali, Octavio Paz definia no o EZLN, mas sim os argumentos sobre os quais seus soldados intelectuais deveriam se aprofundar: maosmo, messianismo, fundamentalismo, e alguns outros ismos mais que agora escapam memria. Frente aos intelectuais progressistas, Paz no economizou acusaes: eles eram responsveis pelo clima de violncia que marcou o ano de 1994 (e todos os anos do Mxico moderno, mas a direita intelectual nunca brilhou por sua memria histrica). Concretamente, pelo assassinato do candidato oficial presidncia da Republica, Colosio. Anos depois, antes de morrer, Paz retificaria e assinalaria que o sistema estava em crise e que, mesmo sem o levante zapatista, estes fatos ocorreriam de qualquer forma16.

Nenhum dos atuais herdeiros de Paz tm sua estatura, mesmo que no lhes falte ambio para ocupar seu lugar. No como intelectuais, pois lhes falta inteligncia e brilho, mas pelo lugar privilegiado que ocupou ao lado do Prncipe. Ainda assim, fazem sua luta. E seguem empenhados em criar, para o zapatismo, uma histria que lhes seja cmoda -- no apenas para atac-lo, mas sim, sobretudo, para evitar a anlise crtica e a reflexo sria e responsvel.

Mas no apenas a histria do zapatismo e dos povos ndios os intelectuais de direita reescrevem. A histria inteira do Mxico est sendo refeita para demonstrar que estamos, agora, no melhor dos Mxicos possveis. dessa maneira que os anes da direita intelectual revisam o ado e nos vendem uma nova imagem de Porfrio Daz, de Santa Ana, de Calleja, de Crdenas.

E esta nsia de reescrever a histria no exclusiva do Mxico. Na tela da globalizao, j nos oferecida uma nova verso, onde o Holocausto nazi contra os judeus foi uma espcie de Disneylndia seletiva, Adolf Hitler uma espcie de alegre Mickey Mouse ariano e, mais recentemente, as guerras do Golfo Prsico e de Kosovo foram "humanitrias". No futuro ado que nos prepara a direita intelectual, a globalizao o deus ex machina que trabalha sobre o mundo para preparar seu prprio advento.

Mas, essas imagens cinzas que nos mostra agora a mega tela da globalizao, que futuro anunciam?

VI- O LIBERAL FASCISTA

Eu digo que este filme j foi visto antes, e se no nos lembramos porque a histria no um artigo atrativo no mercado globalizado. Esses cinzas podem significar algo: a reapario do fascismo.

Parania? Umberto Eco, em um texto chamado O fascismo eterno, de obra j citada, d algumas chaves para entender que o fascismo segue latente na sociedade moderna e que, ainda que pouco provvel que se repitam os campos de extermnio nazistas, alguns lugares do planeta assistem ao que se chama Ur Fascismo. Depois de advertir que o fascismo era um totalitarismo fuzzy, ou seja, disperso, difuso em todo o social, prope algumas de suas caractersticas: rejeio ao avano do saber, irracionalismo, a cultura suspeita de fomentar atitudes crticas, o que no est de acordo com o hegemnico uma traio, medo da diferena e racismo, surge da frustrao individual ou social, xenofobia, os inimigos so, ao mesmo tempo, fortes demais e fracos demais, a vida uma guerra permanente, elitismo aristocrtico, sacrifcio individual para o benefcio da causa, machismo, populismo qualitativo difundido pela televiso, neolinguagem (de lxicos pobres e sintaxe elementar).

Todas estas caractersticas podem ser encontradas nos valores que defendem e difundem as mdias e os intelectuais de direita na era visual, na era da globalizao fragmentada. Ser que hoje, assim como ontem, no se est usando o cansao democrtico, a nusea diante do nada, o desconcerto perante a desordem como aval para uma nova situao histrica de exceo que requer um novo autoritarismo persuasivo, unificador da cidadania em clientes e consumidores de um sistema, um mercado, uma represso centralizada?, pergunta Manuel Vzquez Montalbn na obra j citada.

Olhe voc para a mega tela, todos estes cinzas so a resposta desordem. o que necessrio para enfrentar quem se nega a desfrutar o mundo virtual da globalizao e resiste. E, no entanto, parece que o nmero de descontentes cresce. Um dos anes mexicanos que aspiram a ocupar a cadeira deixada por Octavio Paz constatava, terrificado, que em pesquisa feita no Mxico em 1994, pelo Instituto de Investigaes Sociais da UNAM, 29% dos entrevistados dizia que as leis no devem ser obedecidas se injustas. Em novembro de 1999, para 49% das pessoas pesquisadas na revista Educacin 2001, a resposta pergunta pode o povo desobedecer as leis se elas parecem injustas? era sim. Depois de reconhecer que preciso resolver problemas de crescimento econmico, educao, emprego e sade, assinalava o autor: Todas estes coisas s podem ser alcanadas se a sociedade est segura num piso mais bsico, que o da segurana pblica e do cumprimento da lei. Este piso est cheio de buracos no Mxico, e tende a piorar17. O raciocnio sintomtico: na falta de legitimidade e consenso, polcia!

O clamor da direita intelectual por ordem e legalidade no exclusividade do Mxico. Na Frana, o fascista Le Pen est disposto a responder ao chamado. Na ustria, o neonazista Heider j est pronto, assim como o franquista Aznar no Estado Espanhol. Na Itlia, Berlusconi (alis, o Duce Multimedia) e Gianfranco Fini se aprontam para o momento.

A Europa comparece novamente ao balco do fascismo? Soa duro...e distante. Mas a esto as imagens da mega tela. Estes skinheads que mostram seus porretes na esquina: esto na Alemanha, na Inglaterra, na Holanda? So minoritrios e esto sob controle, nos tranqiliza o udio da mega tela. Mas parece que o fascismo renovado nem sempre tem a cabea raspada e o corpo tatuado com susticas. Mesmo assim no deixa de ser uma direita sinistra.

Se digo direita sinistra pode parecer que jogo com as palavras e recorro novamente a oxmoro, mas quero chamar ateno sobre algo. Depois da queda do murro de Berlim, o espectro poltico europeu, na sua maioria correu atropeladamente ao centro. Isso evidente na esquerda tradicional europia, mas tambm nos partidos de direita18. Com uma mscara moderna, a direita fascista comea a conquistar espao que j ultraa muito as notas policiais na mdia. Isso s possvel porque esto se esforando para construir uma nova imagem, distante do ado violento e autoritrio.

Tambm por estarem apropriando-se da teologia neoliberal com uma facilidade espantosa (por algo ser), e porque em suas campanhas eleitorais esto insistindo muito em temas de segurana pblica e emprego (alertando contra a ameaa dos imigrantes). Alguma diferena das propostas da social democracia ou da esquerda tradicional?

O fascismo espreita por trs da terceira via europia, e tambm da esquerda que no se define (em teoria e prtica) contra o neoliberalismo. s vezes, a direita pode vestir-se com os trapos da esquerda. No Mxico, no recente debate televisivo entre os seis candidatos presidncia da Repblica, o candidato que obteve consenso da direita intelectual foi Gilberto Rincn Gallardo, do Partido Democrata Social, aparentemente de esquerda. Por acaso a televiso no mostrou que alguns dos militantes e candidatos do PDS em Chiapas so lderes de vrios grupos paramilitares, responsveis, entre outras coisas, pelo massacre de Acteal.

Que a direita fascista e a nova direita intelectual estejam prontas para mostrar suas habilidades aos senhores do dinheiro no surpreende. O desconcertante que, algumas vezes, so a social-democracia ou a esquerda institucional quem lhes prepara o caminho.

Se no Estado Espanhol, Felipe Gonzlez (este poltico to aplaudido pela direita intelectual) trabalhou para a vitria do direitista Partido Popular de Jos Mara Aznar, na Itlia, o caminho pelo qual a direita se dirige ao poder chama-se Massimo DAlema. Antes de renunciar, DAlema fez todo o necessrio para que a esquerda naufragasse. DAlema e os seus financiaram com o dinheiro de todos a educao religiosa e prepararam a privatizao da (educao) pblica, participaram plenamente da aventura da OTAN contra a Iugoslvia e da ocupao virtual da Albnia, privatizaram o que puderam, atentaram contra os aposentados, reprimiram os imigrantes, submeteram-se a Washington, reabilitaram os corruptos e at mesmo a Bettino Craxi, em cuja residncia no exlio, como fugitivo da justia, desfilaram para pedir-lhe ajuda, redigiram uma lei sobre os carabineros ditada pelo comando golpista dos mesmos...19 Resultado? Boa parte do eleitorado de esquerda se absteve de votar.

Na complicada geometria poltica europia, a chamada "terceira via" no apenas tem resultado letal para a esquerda, mas tambm tem sido o ponto de partida do neofascismo.

Talvez esteja exagerando, mas a memria uma faculdade estranha. Quanto mais intenso e isolado o estmulo que a memria recebe, mais lembra-se; quanto mais amplo, menos intensa a lembrana20, e eu suspeito que esta avalanche de imagens cinzas na tela para que lembremos com menos intensidade, com preguia, desejando esquecer.

E se os livros no mentem (ver Umberto Eco, em obra citada), foi o fascismo italiano que chamou muitos lderes liberais europeus porque consideravam que estavam levando a cabo interessantes reformas sociais, e poderiam ser uma alternativa ameaa comunista.

Em agosto de 1997, Fausto Bertinotti, (secretario do Partido de Refundao Comunista italiano), escreveu em uma carta ao EZLN: Est aberta, na Europa, uma verdadeira crise de civilizao. Poderamos, infelizmente, narrar centenas, milhares de episdios de barbrie cotidiana, de violncia gratuita, de agresso a pessoas, ao corpo, de trfico de pessoas, de corpos, de rgos, sem nenhum sentido. E acima de tudo, com uma grossa capa de indiferena, como se a vida tivesse perdido o sentido. Poderia contar coisas que acontecem na periferia urbana, realidade e metfora da tragdia humana em que se transformou este novo ciclo de desenvolvimento capitalista.

Diante desta vida sem sentido, o liberal fascista oferece sua cara amvel e argumenta, ressaltando suas bondades, em favor do recurso violncia legalizada, institucional.

O horizonte anuncia a tempestade, e a direita intelectual trata de nos tranqilizar dizendo que no mais que uma chuva, sem importncia. Tudo para garantir o po, o sal...e seu lugar junto ao Prncipe. Protegei-o! No importa que sua camisa seja cinza e em seu aconchegante seio se cultive o ovo da serpente.

O ovo da serpente. Sim, se no me engano, o ttulo de um filme de Bergman que descreve o ambiente em que se gestou o fascismo. E o que fazer? Continuarmos sentados at que termine o filme? Sim? No? Um momento! Muitos j levantaram de seus lugares e fazem alvoroo! O burburinho aumenta! Alguns atiram objetos na tela e vaiam! Em vez de dirigir-se tela, vo para cima! Como se quisessem encontrar o projetor do filme! E parece que o encontraram pois apontam insistentemente para um lugar l no alto! Quem so essas pessoas e com que direito interrompem a projeo? Uma delas levanta uma faixa que diz: Tomemos ento, ns, cidados comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemncia e a mesma fora com que reivindicamos nossos direitos, reivindiquemos tambm o dever de nossos deveres.21 O dever de nossos deveres? Que algum explique porque no entendemos nada! Silncio! Algum toma a palavra...

VII- A CTICA ESPERANA 6k6i11

Os intelectuais progressistas. Os de esperana ctica. O socilogo francs Alain Touraine prope uma classificao deles22: o mais clssico o intelectual que denuncia, onde toda a ateno concentra-se sobre a crtica ao sistema dominante; o segundo tipo identifica-se com tal luta ou tal fora de oposio e torna-se seu intelectual orgnico; o terceiro cr na existncia, na conscincia e na eficcia dos atores, ao mesmo tempo em que conhece seus limites; o quarto so os utpicos: identificam-se com as novas tendncias culturais, da sociedade ou da existncia pessoal. Todos eles (e elas, pois ser intelectual no privilgio masculino) empenham seus esforos em entender, criticamente, a sociedade, sua histria e seu presente, e tratam de desentranhar a incgnita de seu futuro.

No nada fcil a vida dos pensadores progressistas.Em sua funo intelectual do-se conta de como vo as coisas e, noblesse oblige, devem revel-lo, exibi-lo, denunci-lo, comunic-lo. Mas para faz-lo, precisam enfrentar a teologia neoliberal da direita intelectual, e por trs dela esto a mdia, os bancos, as grandes corporaes, os Estados (ou o que resta deles), os governos, os exrcitos, as foras policiais.

E devem faz-lo, alm disso, na era visual. Aqui esto em franca desvantagem, pois preciso levar em conta as grandes dificuldades em que implica enfrentar o poder da imagem unicamente com o recuso da palavra. Mas seu ceticismo frente s aparncias j lhes permitiu descobrir a trama. E com o mesmo ceticismo estruturam suas anlises crticas para desestruturar conceitualmente a mquina das belezas virtuais e as misrias reais. H esperana?

Fazer da palavra um bisturi e megafone um desafio descomunal. E no apenas porque nesta poca o reino o da imagem. Tambm porque o despotismo da era visual confinou a palavra nos bordis e nas barracas de truques e trampas. Ainda assim, s podemos confessar nossa confuso e nossa impotncia, nossa ira e nossas opinies, com palavras. Com palavras, nomeamos ainda nossas perdas e nossas resistncias porque no temos outro recurso, porque os homens esto inevitavelmente abertos palavra e porque pouco a pouco so elas que moldam nosso julgamento. Nosso julgamento, temido amide pelos detentores do poder, molda-se lentamente, como o leito de um rio, por meio de correntes de palavras. Mas as palavras s formam correntes quando elas so profundamente crveis23.

Credibilidade. Algo de que carece a direita intelectual e que, afortunadamente, sobra entre os intelectuais progressistas. Suas palavras produziram, e produzem em muitos, primeiro a surpresa; depois a inquietude. Para essa inquietude no seja abatida pelo conformismo que a era visual prescreve, fazem falta mais coisas que escapam do mbito do trabalho intelectual.

Mas mesmo quando a palavra j se transformou em corrente, a funo intelectual no termina. Os movimentos sociais de protesto diante do poder (neste caso, a globalizao e o neoliberalismo) devem ainda atravessar um longo caminho, no s para conseguir seus objetivos, mas at para se consolidar como alternativa de organizao para muitos. Enfim, preciso reconhecer a responsabilidade particular dos intelectuais. Depende da ao deles, mais do que qualquer outra categoria, saber se o protesto se esgotar em denncia sem perspectiva ou, ao contrrio, levar formao de novos atores sociais e, indiretamente, a novas polticas econmicas e sociais24.

O intelectual progressista se debate continuamente entre Narciso e Prometeu. s vezes, a imagem no espelho o engana e comea seu inexorvel caminho de transmutao num empregado a mais do mega mercado neoliberal. Mas s vezes ele quebra o espelho e descobre no apenas a realidade que est por trs do reflexo, mas tambm outros que no so como ele mas que, como ele, esto quebrando seus respectivos espelhos.

A transformao de uma realidade no tarefa de apenas um ator, por mais forte, inteligente, criativo e visionrio que possa ser. Sozinhos, nem os atores polticos e sociais, nem os intelectuais podem levar a um bom termo essa transformao. um trabalho coletivo. E envolve no apenas ao, mas tambm anlises da realidade e decises sobre os rumos e nfases do movimento de transformao.

Contam que Michelangelo Buonarroti realizou seu David com srias limitaes materiais.O pedao de mrmore sobre o qual esculpiu j havia sido trabalhado por outra pessoa, j tinha perfuraes. O talento do escultor consistiu em fazer uma figura que se ajustasse a estes limites intransponveis e to s, da a postura, a inclinao da pea final25.

Da mesma maneira, o mundo que queremos transformar j foi trabalhado antes pela histria e tem muitas perfuraes. Devemos encontrar o talento necessrio para, a partir destes limites, transform-lo e fazer uma figura simples e sincera: um mundo novo.

Sade, e no esqueam que a idia tambm um formo.

Das montanhas do sudeste mexicano.

Subcomandante Insurgente Marcos

Mxico, abril de 2000.

PS: Algum tem um martelo mo?

(Traduo: Wil



13 Ojarasca, en La Jornada, 10 abril de 2000

14 Ivon Le Bot. Los indgenas contra el neoliberalismo, en La Jornada, 6 maro 2000

15 Carlos Monsivis. Intelectuales Mexicanos de fin de siglo Viento del Sur 8. 1996. P. 43.

16 Braulio Peralta. Op. Cit.

17 Hctor Aguilar Camn. Leyes y Crmenes. En Esquina. Proceso 1225, 23 de abril de 2000.

18 Ver Emiliano Fruta, La nueva derecha europea, y Hernn R. Moheno, Ms all de la vieja izquierda y la nueva derecha., em Urbi et Orbi. ITAM. Abril 2000)

19 Guillermo Almeyra. La izquierda de la derecha En La Jornada. 23 de abril de 2000

20 John Berger. Op. Cit. P.234.

21 Jos Saramago. Discursos de Estocolmo. Ed. Alfaguara.

22 Comment sortir du libralisme? Ed. Fayard. Pars, 1999.

23 John Berger. Op. Cit. P. 255.

24 Alain Touraine. Op. Cit. P. 15.

25 Pablo Fernndez Christlieb. La afectividad colectiva. Ed. Taurus. P. 164-165.

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