4i2947
Nosso
prximo programa: Oxmoro!
Num mundo
em que a barbrie tornou-se quotidiana, preciso reconhecer a
responsabilidade dos intelectuais que resistem. Depende da ao
deles saber se o protesto se esgotar em denncia sem
perspectiva ou, ao contrrio, levar formao de novos
atores sociais e, indiretamente, a novas polticas econmicas e
sociais
Subcomandante
Marcos
44e4t
Para
a figura denominada oxmoro, aplica-se a uma
palavra um epteto que parece contradiz-la;
assim os gnsticos falaro de uma luz escura;
os
alquimistas, de um sol negro..
Jorge
Luis Borges
5s4d3c
ADVERTNCIA,
INTRODUO E PROMESSA
3k2n4h
Ateno:
se voc no leu a epgrafe, bom que o faa agora, porque
pode no entender algumas coisas. Um fato irrefutvel: a
globalizao est aqui. No a qualifico ainda, simplesmente
assinalo uma realidade. Porm, posto que oxmoro, preciso
assinalar que se trata de uma globalizao fragmentada.
A
globalizao foi possvel, entre outras coisas, por duas revolues:
a tecnolgica e a da informtica. Foi e ser dirigida pelo
poder financeiro. Juntas, a tecnologia e a informtica (e com
elas o capital financeiro) diminuram distncias e romperam
fronteiras. Hoje possvel ter informaes sobre qualquer
parte do mundo, a qualquer momento e de forma simultnea. Mas
tambm o dinheiro tem agora o dom da ubiqidade, move-se de
maneira vertiginosa, como se estivesse em todas as partes ao mesmo
tempo. E mais, o dinheiro d uma nova forma ao mundo, a forma de
um mercado, de um mega-mercado.
No
entanto, apesar da globalizao do planeta, ou melhor,
precisamente por ela, a homogeneidade est longe de ser a
caracterstica desta troca de sculo e milnio. O mundo um
arquiplago, um quebra-cabeas cujas peas se tornam outros
quebra-cabeas e a nica coisa realmente globalizada a
proliferao do heterogneo.
Se
a tecnologia e a informtica esto unindo o mundo, o poder
financeiro utiliza-as como armas, como armas em uma guerra. Antes
havamos dito (o texto se chama Sete peas soltas no
quebra-cabeas mundial, EZLN, 1997) que na globalizao
trava-se uma guerra mundial, a quarta, e que se desenvolve um
processo de destruio/despovoamento e reconstruo/reordenamento
(estou tentando resumir apressadamente, sejam benevolentes) em
todo o planeta. Para a construo da nova ordem mundial (planetria,
permanente, imediata e imaterial, segundo Ignacio Ramonet), o
poder financeiro conquista territrios e derruba fronteiras, e o
consegue fazendo a guerra, uma nova guerra. Uma das baixas desta
guerra o mercado nacional, base fundamental do Estado-Nacional.
Este ltimo est em vias de extino, ou ao menos o
Estado-Nacional tradicional. Em seu lugar surgem mercados
integrados ou, melhor, lojas de departamentos do grande shopping
mundial, o mercado globalizado.
As
conseqncias polticas e sociais desta globalizao
constituem um oxmoro reiterado e completo: menos pessoas com
mais riquezas, produzidas com a explorao de mais pessoas com
menos riquezas, a pobreza do nosso sculo no comparvel
a nenhuma outra. No , como j foi alguma vez, o resultado
natural da escassez, mas o conjunto de prioridades impostas pelos
ricos ao resto do mundo1;
para uns poucos poderosos o planeta abriu-se cada vez mais; para
milhes de pessoas o mundo no oferece lugar e elas vagam
errantes de um lado para outro; o crime organizado forma a coluna
vertebral dos sistemas jurdicos e dos governos (os ilegais fazem
as leis e cuidam da ordem pblica; e a integrao
mundial multiplica as fronteiras).
Deste
modo, se ressaltarmos algumas das principais caractersticas
da poca atual, diramos: supremacia do poder financeiro, revoluo
tecnolgica e informtica, guerra, destruio/despovoamento e
reconstruo/reordenamento, ataques aos Estados Nacionais, a
conseqente redefinio do poder e da poltica, o mercado como
figura hegemnica que permeia todos os aspectos da vida humana em
todas as partes, maior concentrao de riqueza em poucas mos,
maior distribuio de pobreza, aumento da explorao e do
desemprego, milhes de pessoas sem-teto, delinqentes que
integram o governo, desintegrao de territrios. Em resumo:
globalizao fragmentada.
Bem,
segundo esta considerao,
no caso dos intelectuais (haja vista que tm a ver com a
sociedade, o poder e o Estado) cabe perguntar: esto padecendo do
mesmo processo de destruio/despovoamento e reconstruo/reordenamento?
Que papel lhes atribui o poder financeiro? Como usam (ou so
usados pelos) os avanos tecnolgicos e de informtica? Que
posio tm nessa guerra? Como se relacionam com os combalidos
Estados Nacionais? Qual o seu vnculo com esse poder e poltica?
Que lugar tm no mercado? E como se posicionam frente s conseqncias
polticas e sociais da globalizao? Em suma: como se inserem
nesta globalizao fragmentada?
O
mundo teria mudado por e para esta guerra. Se as coisas de fato so
assim, os intelectuais clssicos no existiriam mais, nem suas
antigas funes. Em seu lugar, uma nova gerao de cabeas
pensantes (para usar um termo criado pelo comandante zapatista
Tacho) teria emergido (ou est por emergir) e teriam novas funes
em sua atividade intelectual.
Ainda
que pretendamos aqui nos limitar aos intelectuais de direita, sero
evidentes algumas observaes sobre os intelectuais em geral e
sobre suas relaes com o poder. Como o propsito deste texto
participar e alentar a polmica entre os intelectuais de
direita e esquerda, fica aqui uma reflexo mais profunda (sobre
os intelectuais e o poder, e sobre os intelectuais e a transformao)
para futuro e improvveis escritos.
Saudaes,
e tenha mo seu controle remoto. Em um momento comeamos
I
-- A GLOBALIZAO: PAY PER VIEW
1a5b
Na
pgina do calendrio, o ano dois mil est entre os sculos 20
e 21. No me parece to importante esta contagem de tempo, mas
me parece que um momento adequando para que, por todos os
lados, surjam oxmoros. Para no ir muito longe, poderia dizer
que esta poca o princpio do fim ou o fim do princpio de
algo. Algo, forma irresponsvel de eludir um
problema. Porm j se sabe que nossa especialidade no a
soluo de problemas, e sim sua criao. Sua criao?
No, muito presunoso, melhor seria dizer sua proposio.
Sim, nossa especialidade propor problemas. Tudo parece j ter
acontecido antes, como um velho filme que se repete com outras
imagens, outros recursos cinematogrficos, incluindo atores
diferentes, mas com o mesmo roteiro. Como se a modernidade (ou a
ps-modernidade, deixo a preciso para quem se d ao
trabalho) da globalizao se vestisse com seu oxmoro e nos
presenteasse com uma modernidade arcaica, ranosa e antiga.
Se
isto que digo lhes parece mera apreciao subjetiva, atribua ao
fato de estarmos na montanha, resistindo e em rebeldia, mas
conceda-nos o privilgio da leitura e veja se trata-se de um
sintoma a mais de mal de montanha, ou voc compartilha
desta sensao de dej vu que flui pelo hipercinema que
este mundo globalizado.
O
mundo no quadrado, pelo menos isso o que nos ensinam na
escola. Porm, no fio cortante da unio dos milnios, o mundo
tambm no redondo. Ignoro qual seja a figura geomtrica
adequada para representar a forma atual do mundo, mas, haja visto
que estamos na poca da comunicao digital audiovisual, poderamos
tentar defini-la como uma gigantesca tela. Voc pode agregar
uma tela de televiso, ainda que eu prefira uma tela de
cinema. No apenas por preferir o cinema, tambm (e acima de
tudo) porque me parece que h na nossa frente uma pelcula, uma
velha pelcula, modernamente velha (para seguir com oxmoro).
,
alm disso, uma dessas telas onde se pode programar a apresentao
simultnea de vrias imagens (picture in picture, a
chamam). No caso do mundo globalizado, de imagens que se sucedem
em qualquer rinco do planeta. Mas ali no esto todas as
imagens. E no por falta de espao na tela, mas porque algum
selecionou estas imagens e no outras. Quer dizer, estamos vendo
uma tela com diversos quadros que apresentam imagens simultneas
-- de diferentes partes do mundo, certo --, mas nem todo o
mundo est ali.
Ao
chegar neste ponto, a gente se pergunta, inevitavelmente, quem
tem o controle remoto desta tela audiovisual? E quem faz a
programao? Boas perguntas, mas voc no encontrar aqui
estas respostas. E no apenas porque no as temos de cincia
certa, mas tambm porque no so o tema deste texto.
Posto
que no podemos trocar de canal no cinema, vejamos alguns dos
diferentes quadros que nos oferece a mega tela da globalizao.
Vamos
ao continente americano. L voc tem, num quadro, a imagem da
Universidade Nacional Autnoma do Mxico (UNAM) ocupada por um
grupo paramilitar do governo: a chamada Polcia Federal
Preventiva. No parece que estes homens de uniforme cinza estejam
estudando. Mais adiante,demarcada pelas montanhas do sudeste
mexicano, uma coluna de tanques blindados cinzas cruza uma
comunidade indgena do Chiapas. Do outro lado, a imagem cinza
apresenta um policial norte-americano que detm, com uma violncia
requintada, um jovem em um lugar que pode ser Seatlle ou
Washington.
No
quadro europeu proliferam tambm os cinzas. Na ustria, Joer
Heider e seu fervor pr-nazi. Na Itlia, com a ajuda
desinteressada de DAlema, Silvio Berlusconi arruma a gravata.
No Estado Espanhol, Felipe Gonzles maquia o rosto de Jos Maria
Aznar. Na Frana Le Pen quem nos sorri.
A
sia, frica e Oceania apresentam a mesma cor, que se repete nos
seus respectivos rinces.
Humm...
tantos cinza... Humm... ns podemos protestar... depois de tudo,
eles nos prometeram um programa multicor... Pelo menos, aumentemos
o volume. Vamos tentar entender que isso ...
II.
- UM ESQUECIMENTO MEMORVEL
Como
a globalizao fragmentada, os intelectuais esto a, so uma
realidade da sociedade moderna.
E o estar a deles no se limita poca atual,
remonta aos primeiros os da sociedade humana. Mas a
arqueologia dos intelectuais escapa a nosso conhecimento e
possibilidades, por isso partimos do fato de que esto a
Em todo caso, o que nos propomos a descobrir a sua forma de
estar a.
Os
intelectuais enquanto categoria so algo muito vago, j se sabe.
Diferente, por outro lado, definir a funo
intelectual. A funo
intelectual consiste em determinar criticamente o que se considera
uma aproximao satisfatria do prprio conceito de verdade; e
qualquer um pode desenvolv-la, inclusive um marginal que reflita
de alguma forma sobre sua prpria condio e de alguma maneira
a expresse, enquanto um escritor pode tra-la por reagir aos
acontecimentos com paixo, sem impor o crivo da reflexo2.
Se
assim, ento o trabalho intelectual , fundamentalmente, analtico
e crtico. Frente a um fato social (para nos limitar a um
universo), o intelectual analisa o evidente, o afirmativo e o
negativo, buscando o ambguo, o que no nem uma coisa nem
outra (embora assim se apresente) e mostra (comunica, desvenda,
denuncia) no apenas o que no evidente, mas inclusive o que
se contradiz ao evidente.
de se supor que as sociedades humanas tenham pessoas que se
dediquem profissionalmente a esta anlise crtica e a comunicar
seus resultados. Nas palavras de Norberto Bobbio: Os
intelectuais so todos aqueles para os quais transmitir mensagens
a ocupao habitual e consciente (...) e, falando de uma
maneira que pode at parecer brutal, quase sempre representa a
maneira de ganhar o po de cada dia. Fiquemos com esta
aproximao ao intelectual, ao profissional da anlise crtica
e da comunicao.
J
havamos sido advertidos de que o intelectual nem sempre exerce a
funo intelectual. A funo intelectual se exerce sempre
com antecedncia (ao que pode acontecer) ou com atraso (sobre o
que j aconteceu); raramente sobre o que est acontecendo, por
razes de ritmo, porque os acontecimentos so sempre mais rpidos
e urgentes que a reflexo sobre os acontecimentos3.
Por
sua funo intelectual, este profissional da anlise crtica e
sua comunicao seria uma espcie de conscincia incmoda e
impertinente da sociedade (nesta poca da sociedade globalizada)
em seu conjunto e de suas partes. Um inconformado com tudo, com as
foras polticas e sociais, com o Estado, com o governo, com os
meios de comunicao, com a cultura, com as artes, com a religio
e mais o que o leitor quiser agregar. Se o ator social diz aqui
est, o intelectual murmura, ctico: falta, ou sobra
algo.
Teramos ento que o intelectual em seu papel um crtico da
imobilidade, um promotor da mudana, um progressista. No entanto,
este comunicador de idias crticas est inserido em uma
sociedade polarizada, confrontada entre si mesma de muitas
maneiras e com diferentes argumentos, mas dividida
fundamentalmente entre os que usam o poder para que as coisas no
mudem e os que lutam pela mudana. O intelectual deve, por um
elementar sentido de ridculo, compreender que no lhe
outorgado um papel de bruxo do esprito em torno do qual vai
girar o ser ou no ser histrico, mas evidentemente ele tem
conhecimentos (...) que pode alinhar em um ou outro sentido histrico.
Pode alinhar na busca da elucidao das injustias presentes no
mundo atual ou na cumplicidade com a paralisao e a instalao
do Limbo.4
E
aqui que o intelectual opta, elege, escolhe entre sua funo
intelectual e a funo que lhe propem os atores sociais.
Aparece assim a diviso (e a luta) entre intelectuais
progressistas e reacionrios. Ambos seguem trabalhando com a
comunicao de anlise crtica, mas enquanto os progressistas
continuam na crtica
da imobilidade, da permanncia, da hegemonia e do homogneo; os
reacionrios desenvolvem a crtica mudana, ao movimento,
rebelio, e diversidade. O intelectual reacionrio
esquece sua funo intelectual, renuncia reflexo crtica
e sua memria opera de modo que no exista ado ou futuro. O
presente e o imediato so o nico tempo possvel e, por isso,
inquestionvel.
Ao dizer intelectuais progressistas e reacionrios nos
referimos aos intelectuais de esquerda e de direita. Aqui
convm lembrar que o intelectual de esquerda exerce sua funo
intelectual, ou seja, sua anlise crtica tambm frente
esquerda (social, partidria, ideolgica), mas na poca atual
sua crtica fundamentalmente dirigida ao poder hegemnico: o
dos senhores do dinheiro e quem os representa no campo da poltica
e das idias.
Deixemos
agora os intelectuais progressistas e de esquerda, e vamos aos
intelectuais reacionrios, a direita intelectual.
III
-- O PRAGMATISMO INTELECTUAL
6x3l25
No
princpio os gigantes intelectuais de direita foram
progressistas. Falo dos grandes intelectuais de direita, os
think tanks da reao, no dos anes que foram
ingressando aos seus clubes pensantes. Octavio Paz,
excelente poeta e ensasta, o maior intelectual de direita dos ltimos
anos no Mxico, declarou: Venho do pensamento chamado de
esquerda. Foi algo muito importante na minha formao. No sei
agora...a nica coisa que sei que meu dilogo s vezes
minha discusso com eles (os intelectuais de esquerda). No
tenho muito para falar com os outros5.
Casos como o de Paz se repetem pela mega tela global.
O
intelectual progressista, enquanto comunicador de anlise crtica,
se converte em objeto e objetivo para o poder dominante. Objeto a
comprar e objetivo a destruir. Enormes recursos so mobilizados
para as duas coisas. O intelectual progressista nasce em
meio a este ambiente de seduo persecutria. Alguns resistem e
se defendem (quase sempre sozinhos, a solidariedade entre grupos no
parece ser a caracterstica do intelectual progressista), mas
outros, talvez fatigados, vasculham sua bagagem de idias e tiram
as que so ao mesmo tempo crtica e razo para legitimar o
poder. O novo exige muito, o velho a est, sendo que basta usar
o argumento de inevitvel para que lhe ofeream uma cmoda
poltrona (s vezes em forma de bolsa de estudos, posio, prmio,
espao) por conta do Prncipe antes to criticado.
O
inevitvel tem nome hoje: globalizao fragmentada,
pensamento nico -- isto , a traduo em termos ideolgicos
e com pretenso universal dos interesses de um conjunto de foras
econmicas, em particular as do capital internacional6.
Fim da histria, onipresena e onipotncia do dinheiro,
substituio da poltica pela polcia, o presente como nico
futuro possvel, racionalizao da desigualdade social,
justificao da sobre-explorao dos seres humanos e recursos
naturais, racismo, intolerncia, guerra.
Em
uma poca marcada por dois novos paradigmas, comunicao e
mercado, o intelectual de direita (e o ex-esquerda) entende que
ser moderno significa seguir o slogan: adaptam-se ou percam
vossos privilegiados lugares!
No
necessrio nem ser original, o intelectual de direita j tem
o canteiro de onde haver de tirar as pedras que adornem a
globalizao fragmentada: o pensamento nico. A
assepsia no importa muito, o pensamento nico tem suas
principais fontes no Banco Mundial, no Fundo Monetrio
Internacional, na Organizao para a Cooperao e
Desenvolvimento Econmico, na Organizao Mundial do Comrcio,
na Comisso Europia, no Bundesbank, no Banco da Frana que,
mediante seu financiamento, alinham a servio de seus ideais, em
todo o planeta, numerosos centros de investigao, universidades
e fundaes, os quais, por sua vez,anunciam e difundem a boa
nova7.
Com
tal abundncia de recursos, fcil que floresam elites que h
muitos anos, empenham-se a fundo em fazer o elogio ao
pensamento nico; que exercem uma verdadeira chantagem
contra toda reflexo crtica em nome da modernizao, do
realismo, da responsabilidade e da razo; que
afirmam o carter inevitvel da atual evoluo das
coisas; que propem a capitulao intelectual, que condenam
escurido irracional todos aqueles que se negam as aceitar que o estado natural
da sociedade o mercado8.
Longe
da reflexo, do pensamento crtico, os intelectuais de direita
tornam-se pragmticos por excelncia, exilados da funo
intelectual e transformados em ecos, mais ou menos estilizados,
dos spots publicitrios
que inundam o mega mercado da globalizao fragmentada.
Frente
ao intelectual de esquerda, o de direita impe o rtulo lapidar
de messianismo tresloucado. Quem pode questionar um presente
pleno de liberdades, onde qualquer um pode decidir o que comprar,
sejam artigos de primeira necessidade, ideologias, propostas polticas
e comportamentos para qualquer ocasio?
IV-
OS CLARIVIDENTES CEGOS
Parafraseando
Rgis Debray , o problema aqui no por que ou como a
globalizao irremedivel, mas sim por que ou com todo o
mundo, ou quase, acredita que ela seja irremedivel. Uma resposta
possvel: A tecnologia do fazer-crer (...) O poder da informao..
.Inf-formar:dar forma, formatar. Con-formar:
dar conformidade. Trans-formar: modificar uma
situao10.
Com
a globalizao da economia, globaliza-se tambm a cultura. E a
informao. Normal, portanto, que as grandes empresas de
comunicao estendam sobre o mundo inteiro sua rede eletrnica
sem que nada nem ningum as impea. Nem Ted Turner, da CNN;
nem Rupert Murdoch, da News Corporation Limited; nem Bill Gates,
da Microsoft; nem Jeffrey Vinik, da Fidelity Investments; nem
Larry Rong, do China Trust and International Investment; nem
Robert Allen, de ATT; assim como George Soros ou dezenas de outros
novos amos do mundo, submeteram jamais seus projetos ao sufrgio
universal11
Na
globalizao fragmentada, as sociedades so fundamentalmente
sociedades miditicas. As mdias so o grande espelho, no do
que uma sociedade , mas do que deve aparentar. Plena de
tautologias e evidncias, a sociedade miditica avara em razes
e argumentos. Aqui, repetir demonstrar.
E
o que se repete so as imagens, como estes cinzas que nos mostra
agora a grande tela globalizada. Debray nos disse: A equao da
era visual algo assim como: o visvel = o real = o verdadeiro.
Eis aqui a idolatria revisitada (e sem dvida redefinida)12.
Os intelectuais de direita tm aprendido bem sua lio. Mais,
um dos dogmas de sua teologia.
Onde
se deu o salto que iguala o visvel ao verdadeiro? Truques da
tela globalizada.
O
mundo inteiro, melhor ainda, o conhecimento inteiro est mo
de qualquer um com uma televiso ou um computador porttil. Sim,
mas no qualquer mundo e no qualquer conhecimento. Debray
explica que o centro de gravidade das informaes foi deslocado
do escrito para o audiovisual, do signo para a imagem. As
vantagens para os intelectuais de direita (e as desvantagens para
os progressistas) so bvias.
Analisando
o comportamento da informao na Frana durante a guerra do
Golfo Prsico, se revela o poder das mdias: no comeo do
conflito, 70% dos ses mostravam-se hostis guerra; no
final, a mesma porcentagem aprovava-a. Sob o bombardeio das mdias,
a opinio pblica sa mudou e o governo obteve as
vantagens por sua participao blica.
J
se pode tirar algumas concluses: o novo intelectual de direita
tem que desempenhar sua funo legitimadora na era visual; optar
pelo direto e imediato; ar do signo imagem e da reflexo
ao comentrio televisivo. Nem ao menos tem que se esforar para
legitimar um sistema totalitrio, brutal, genocida, racista,
intolerante e excludente. O mundo que objeto de sua funo
intelectual o apresentado pelos meios de comunicao: uma
representao virtual. Se no hipermercado da globalizao o
Estado-Nacional se redefine
como uma empresa, mais, os governantes como gerentes de vendas e
os exrcitos e polcias em agncias de vigilncia, ento a
direita intelectual faz o papel de relaes pblicas.
Em outras palavras, na globalizao, os intelectuais de
direita so multiuso, coveiros da anlise crtica e da
reflexo, ilusionistas nas rodas de moinho da teologia
neoliberal, pontos de governos que esqueceram o
script, comentaristas do evidente, instigadores de soldados
e polcias, juizes gnsticos que separam em rtulos de
verdadeiro e falso o que lhes convm. Guarda-costas
tericos do Prncipe, e anunciadores da nova histria.
1
Jorge Berger. Cada vez que decimos adis. Ediciones de la flor. Argentina, 1977. Pgs. 278-279
2
Umberto Eco. Cinco escritos morales. Ed. Lumen. Traduo
Helena Lozano Miralles. p.
14-15)
3
Umberto Eco. Op. Cit. P.
29.
4
Manuel Vzquez Montalbn.
Panfleto desde el planeta de los simios.
Ed.
Drakontos. Barcelona 1995.
p. 48
5
Braulio Peralta El poeta en su tierra. Dilogos con Octavio Paz.
Ed. Grijalbo.
6
Ignacio Ramonet. Un mundo sin rumbo. Crisis de fin de siglo.
Editorial Debate. Madrid.
7
Ignacio Ramonet. Op. Cit. P. 111.
9
Manuel Vzquez Montalbn.
Op. Cit. p.
47.
10
Regis Debray. Croire, Voir, Faire. Ed. Odile Jacob. Pars
1999. P. 193.
11
Ignacio Ramonet. Op. Cit. p. 109.
12
Rgis Debray. Op. Cit. P. 200.
V-
O FUTURO ADO
195c6x
Queimar livros e erguer fortificaes tarefa comum dos
prncipes, disse Jorge Luis Borges. E acrescenta que todo o prncipe
quer que a histria comece a partir dele. Na era da globalizao
fragmentada no se queimam livros (embora ergam-se fortificaes),
eles apenas so substitudos. Mesmo desta maneira, mais que
suprimir a histria, o prncipe neoliberal instrui seus
intelectuais para que a refaam de maneira que o presente seja o
fim dos tempos.
Os
Maquiadores da Histria, assim Luis Hernndez Navarro
intitulou um artigo dedicado ao debate com os intelectuais de
direita no Mxico13.
Alm de provocar o presente texto (escrito com a inteno de
dar seguimento s suas posies), Hernndez Navarro adverte
sobre uma nova ofensiva: a nova direita intelectual dirige suas
baterias contra figuras representativas da intelectualidade
progressista mexicana.Rentista tardia da tranqilidade planetria
do pensamento nico, renegada de sua identidade, herdeira
de papel ado da queda do muro de Berlim, scia e emuladora do
circuito cultural conservador norte-americano, esta direita est
convencida de que a crtica cultural outorga credenciais
suficientes para emitir, sem argumentao, juzos sumrios a
seus adversrios no terreno poltico.
As
razes no-ideolgicas deste ataque devem ser buscadas na
disputa pelo espao de credibilidade. No Mxico os intelectuais
de esquerda tm grande influncia na cultura e na universidade.
Estorvam, esse o seu delito.
Ou
melhor, este um de
seus delitos. Outro o apoio destes intelectuais progressistas
luta zapatista por uma paz justa e digna, pelo reconhecimento
dos direitos dos povos indgenas e pelo fim da guerra contra os
ndios do pas. Este pecado no menor. "O levante
zapatista inaugura uma nova etapa, a do comeo dos movimentos indgenas
como atores da oposio globalizao neoliberal"14.
No somos os melhores nem os nicos: a esto os indgenas
do Equador e do Chile, os protestos em Seattle e Washington (e os
que se sigam em ordem cronolgica, no em importncia) Mas
somos uma das imagens que distorcem a mega tela da globalizao
fragmentada e, como fenmeno social e histrico, demandamos
reflexo e anlise crtica.
E
a reflexo e a anlise crtica no esto no
"arsenal" da direita intelectual. Como cantar as glrias
da nova ordem mundial (e sua imposio no Mxico) se um grupo
de indgenas "pr-modernos" no apenas desafia o
poder, mas tambm conquista a simpatia de uma importante faixa
dos intelectuais? Em conseqncia, o Prncipe ditou suas
ordens: ataquem uns e outros, eu entro com o exrcito e os
meios de comunicao, vocs, com as idias. Assim a nova
direita intelectual dedicou zombarias e calnias a seus pares da
esquerda. Aos indgenas rebeldes zapatistas, nos dedicou...uma
nova histria.
E,
enquanto o zapatismo teve impacto internacional, a direita
intelectual, em vrias partes do mundo (no apenas no Mxico),
dedicou-se a esta tarefa. Os intelectuais de direita no apenas
maquiam a histria, refazem-na, reescrevem-na convenincia do
Prncipe e maneira de sua funo intelectual.
Mas
voltemos ao Mxico. "Ao longo deste sculo, os intelectuais
no Mxico tm desempenhado funes diversas: cortesos
de luxo do poder de turno, decorao do Estado, vozes
dissidentes (que, para institucionalizar-se, so chamadas Conscincias
Crticas), intrpretes privilegiados da histria e da
sociedade, espetculos em si mesmos15.????A???u??/span>/font>
O
ltimo grande intelectual de direita no Mxico, Octavio Paz,
cumpriu cabalmente o trabalho encomendado pelo Prncipe. No
economizou palavras para desprestigiar os zapatistas e quem
mostrasse simpatia por sua causa (ateno: no por sua forma de
luta). Uma das melhores mostras de Paz a servio do Prncipe est
em seus textos e declaraes do incio de 1994. Ali, Octavio
Paz definia no o EZLN, mas sim os argumentos sobre os quais seus
soldados intelectuais deveriam se aprofundar: maosmo,
messianismo, fundamentalismo, e alguns outros ismos mais que
agora escapam memria. Frente aos intelectuais progressistas,
Paz no economizou acusaes: eles eram responsveis pelo
clima de violncia que marcou o ano de 1994 (e todos os
anos do Mxico moderno, mas a direita intelectual nunca brilhou
por sua memria histrica). Concretamente, pelo assassinato do
candidato oficial presidncia da Republica, Colosio. Anos
depois, antes de morrer, Paz retificaria e assinalaria que o
sistema estava em crise e que, mesmo sem o levante zapatista,
estes fatos ocorreriam de qualquer forma16.
E
esta nsia de reescrever a histria no exclusiva do Mxico.
Na tela da globalizao, j nos oferecida uma nova verso,
onde o Holocausto nazi contra os judeus foi uma espcie de
Disneylndia seletiva, Adolf Hitler uma espcie de alegre
Mickey Mouse ariano e, mais recentemente, as guerras do Golfo Prsico
e de Kosovo foram "humanitrias". No futuro ado que
nos prepara a direita intelectual, a globalizao o deus
ex machina que trabalha sobre o mundo para preparar seu prprio
advento.
Mas,
essas imagens cinzas que nos mostra agora a mega tela da globalizao,
que futuro anunciam?
VI-
O LIBERAL FASCISTA
Eu
digo que este filme j foi visto antes, e se no nos lembramos
porque a histria no um artigo atrativo no mercado
globalizado. Esses cinzas podem significar algo: a reapario do
fascismo.
Parania?
Umberto Eco, em um texto chamado O fascismo eterno, de obra
j citada, d algumas chaves para entender que o fascismo segue
latente na sociedade moderna e que, ainda que pouco provvel que
se repitam os campos de extermnio nazistas, alguns lugares do
planeta assistem ao que se chama Ur Fascismo. Depois de
advertir que o fascismo era um totalitarismo fuzzy, ou
seja, disperso, difuso em todo o social, prope algumas de suas
caractersticas: rejeio ao avano do saber, irracionalismo,
a cultura suspeita de fomentar atitudes crticas, o que no
est de acordo com o hegemnico uma traio, medo da
diferena e racismo, surge da frustrao individual ou social,
xenofobia, os inimigos so, ao mesmo tempo, fortes demais e
fracos demais, a vida uma guerra permanente, elitismo aristocrtico,
sacrifcio individual para o benefcio da causa, machismo,
populismo qualitativo difundido pela televiso,
neolinguagem (de lxicos pobres e sintaxe elementar).
Todas
estas caractersticas podem ser encontradas nos valores que
defendem e difundem as mdias e os intelectuais de direita na era
visual, na era da globalizao fragmentada. Ser que hoje,
assim como ontem, no se est usando o cansao democrtico, a
nusea diante do nada, o desconcerto perante a desordem como aval
para uma nova situao histrica de exceo que requer um
novo autoritarismo persuasivo, unificador da cidadania em clientes
e consumidores de um sistema, um mercado, uma represso
centralizada?, pergunta Manuel Vzquez Montalbn na obra j
citada.
Olhe
voc para a mega tela, todos estes cinzas so a resposta
desordem. o que necessrio para enfrentar quem se nega a
desfrutar o mundo virtual da globalizao e resiste. E, no
entanto, parece que o nmero de descontentes cresce. Um dos anes
mexicanos que aspiram a ocupar a cadeira deixada por Octavio Paz
constatava, terrificado, que em pesquisa feita no Mxico em 1994,
pelo Instituto de Investigaes Sociais da UNAM, 29% dos
entrevistados dizia que as leis no devem ser obedecidas se
injustas. Em novembro de 1999, para 49% das pessoas pesquisadas na
revista Educacin 2001, a resposta pergunta pode o
povo desobedecer as leis se elas parecem injustas? era sim.
Depois de reconhecer que preciso resolver problemas de
crescimento econmico, educao, emprego e sade, assinalava o
autor: Todas estes coisas s podem ser alcanadas se a
sociedade est segura num piso mais bsico, que o da segurana
pblica e do cumprimento da lei. Este piso est cheio de buracos
no Mxico, e tende a piorar17.
O raciocnio
sintomtico: na falta de legitimidade e consenso, polcia!
O
clamor da direita intelectual por ordem e legalidade no
exclusividade do Mxico. Na Frana, o fascista Le Pen est
disposto a responder ao chamado. Na ustria, o neonazista Heider
j est pronto, assim como o franquista Aznar no Estado
Espanhol. Na Itlia, Berlusconi (alis, o Duce Multimedia)
e Gianfranco Fini se aprontam para o momento.
A
Europa comparece novamente ao balco do fascismo? Soa duro...e
distante. Mas a esto as imagens da mega tela. Estes skinheads
que mostram seus porretes na esquina: esto na Alemanha, na
Inglaterra, na Holanda? So minoritrios e esto sob
controle, nos tranqiliza o udio da mega tela. Mas parece
que o fascismo renovado nem sempre tem a cabea raspada e o corpo
tatuado com susticas. Mesmo assim no deixa de ser uma direita
sinistra.
Se
digo direita sinistra pode parecer que jogo com as palavras
e recorro novamente a oxmoro, mas quero chamar ateno sobre
algo. Depois da queda do murro de Berlim, o espectro poltico
europeu, na sua maioria correu atropeladamente ao centro. Isso
evidente na esquerda tradicional europia, mas tambm nos
partidos de direita18.
Com uma mscara moderna, a
direita fascista comea a conquistar espao que j ultraa
muito as notas policiais na mdia. Isso s possvel porque
esto se esforando para construir uma nova imagem, distante do
ado violento e autoritrio.
Tambm
por estarem apropriando-se da teologia neoliberal com uma
facilidade espantosa (por algo ser), e porque em suas campanhas
eleitorais esto insistindo muito em temas de segurana pblica
e emprego (alertando contra a ameaa dos imigrantes).
Alguma diferena das propostas da social democracia ou da
esquerda tradicional?
O
fascismo espreita por trs da terceira via europia, e
tambm da esquerda que no se define (em teoria e prtica)
contra o neoliberalismo. s vezes, a direita pode vestir-se com
os trapos da esquerda. No Mxico, no recente debate televisivo
entre os seis candidatos presidncia da Repblica, o
candidato que obteve consenso da direita intelectual foi Gilberto
Rincn Gallardo, do Partido Democrata Social, aparentemente de
esquerda. Por acaso a televiso no mostrou que alguns dos
militantes e candidatos do PDS em Chiapas so lderes de vrios
grupos paramilitares, responsveis, entre outras coisas, pelo
massacre de Acteal.
Que
a direita fascista e a nova direita intelectual estejam prontas
para mostrar suas habilidades aos senhores do dinheiro no
surpreende. O desconcertante que, algumas vezes, so a
social-democracia ou a esquerda institucional quem lhes prepara o
caminho.
Se
no Estado Espanhol, Felipe Gonzlez (este poltico to
aplaudido pela direita intelectual) trabalhou para a vitria do
direitista Partido Popular de Jos Mara Aznar, na Itlia, o
caminho pelo qual a direita se dirige ao poder chama-se Massimo DAlema.
Antes de renunciar, DAlema fez todo o necessrio para que a
esquerda naufragasse. DAlema e os seus financiaram com o
dinheiro de todos a educao religiosa e prepararam a privatizao
da (educao) pblica, participaram plenamente da aventura da
OTAN contra a Iugoslvia e da ocupao virtual da Albnia,
privatizaram o que puderam, atentaram contra os aposentados,
reprimiram os imigrantes, submeteram-se a Washington, reabilitaram
os corruptos e at mesmo a Bettino Craxi, em cuja residncia no
exlio, como fugitivo da justia, desfilaram para pedir-lhe
ajuda, redigiram uma lei sobre os carabineros ditada pelo
comando golpista dos mesmos...19
Resultado? Boa parte do eleitorado de esquerda se absteve de
votar.
Talvez
esteja exagerando, mas a memria uma faculdade estranha.
Quanto mais intenso e isolado o estmulo que a memria
recebe, mais lembra-se; quanto mais amplo, menos intensa a
lembrana20,
e eu suspeito que esta avalanche de imagens cinzas na tela para
que lembremos com menos intensidade, com preguia, desejando
esquecer.
E
se os livros no mentem (ver Umberto Eco, em obra citada), foi o
fascismo italiano que chamou muitos lderes liberais europeus
porque consideravam que estavam levando a cabo interessantes
reformas sociais, e poderiam ser uma alternativa ameaa
comunista.
Em
agosto de 1997, Fausto Bertinotti, (secretario do Partido de
Refundao Comunista italiano), escreveu em uma carta ao EZLN:
Est aberta, na Europa, uma verdadeira crise de civilizao.
Poderamos, infelizmente, narrar centenas, milhares de episdios
de barbrie cotidiana, de violncia gratuita, de agresso a
pessoas, ao corpo, de trfico de pessoas, de corpos, de rgos,
sem nenhum sentido. E acima de tudo, com uma grossa capa de
indiferena, como se a vida tivesse perdido o sentido. Poderia
contar coisas que acontecem na periferia urbana, realidade e metfora
da tragdia humana em que se transformou este novo ciclo de
desenvolvimento capitalista.
Diante
desta vida sem sentido, o liberal fascista oferece sua cara amvel
e argumenta, ressaltando suas bondades, em favor do recurso
violncia legalizada, institucional.
O
horizonte anuncia a tempestade, e a direita intelectual trata de
nos tranqilizar dizendo que no mais que uma chuva, sem
importncia. Tudo para garantir o po, o sal...e seu lugar junto
ao Prncipe. Protegei-o! No importa que sua camisa seja cinza e
em seu aconchegante seio se cultive o ovo da serpente.
O
ovo da serpente. Sim, se no me engano, o ttulo de um
filme de Bergman que descreve o ambiente em que se gestou o
fascismo. E o que fazer? Continuarmos sentados at que termine o
filme? Sim? No? Um momento! Muitos j levantaram de seus
lugares e fazem alvoroo! O
burburinho aumenta! Alguns atiram objetos na tela e vaiam! Em vez
de dirigir-se tela, vo para cima! Como se quisessem encontrar
o projetor do filme! E parece que o encontraram pois apontam
insistentemente para um lugar l no alto! Quem so essas pessoas
e com que direito interrompem
a projeo? Uma delas levanta uma faixa que diz: Tomemos ento,
ns, cidados comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemncia
e a mesma fora com que reivindicamos nossos direitos,
reivindiquemos tambm o dever de nossos deveres.21
O dever de nossos deveres? Que algum explique porque no
entendemos nada! Silncio! Algum toma a palavra...
VII-
A CTICA ESPERANA
6k6i11
Os
intelectuais progressistas. Os
de esperana ctica. O
socilogo francs Alain Touraine prope uma classificao
deles22:
o mais clssico o intelectual que denuncia, onde toda a ateno
concentra-se sobre a crtica ao sistema dominante; o segundo tipo
identifica-se com tal luta ou tal fora de oposio e torna-se
seu intelectual orgnico; o terceiro cr na existncia, na
conscincia e na eficcia dos atores, ao mesmo tempo em que
conhece seus limites; o quarto so os utpicos: identificam-se
com as novas tendncias culturais, da sociedade ou da existncia
pessoal. Todos eles
(e elas, pois ser intelectual no privilgio masculino)
empenham seus esforos em entender, criticamente, a sociedade,
sua histria e seu presente, e tratam de desentranhar a incgnita
de seu futuro.
No
nada fcil a vida dos pensadores progressistas.Em sua funo
intelectual do-se conta de como vo as coisas e, noblesse
oblige, devem revel-lo, exibi-lo, denunci-lo, comunic-lo.
Mas para faz-lo, precisam enfrentar a teologia neoliberal da
direita intelectual, e por trs dela esto a mdia, os bancos,
as grandes corporaes, os Estados (ou o que resta deles), os
governos, os exrcitos, as foras policiais.
E
devem faz-lo, alm disso, na era visual. Aqui esto em franca
desvantagem, pois preciso levar em conta as grandes
dificuldades em que implica enfrentar o poder da imagem unicamente
com o recuso da palavra. Mas seu ceticismo frente s aparncias
j lhes permitiu descobrir a trama. E com o mesmo ceticismo
estruturam suas anlises crticas para desestruturar
conceitualmente a mquina das belezas virtuais e as misrias
reais. H esperana?
Fazer
da palavra um bisturi e megafone um desafio descomunal. E no
apenas porque nesta poca o reino o da imagem. Tambm porque
o despotismo da era visual confinou a palavra nos bordis e nas
barracas de truques e trampas. Ainda assim, s podemos
confessar nossa confuso e nossa impotncia, nossa ira e nossas
opinies, com palavras. Com palavras, nomeamos ainda nossas
perdas e nossas resistncias porque no temos outro recurso,
porque os homens esto inevitavelmente abertos palavra e
porque pouco a pouco so elas que moldam nosso julgamento. Nosso
julgamento, temido amide pelos detentores do poder, molda-se
lentamente, como o leito de um rio, por meio de correntes de
palavras. Mas as palavras s formam correntes quando elas so
profundamente crveis23.
O
intelectual progressista se debate continuamente entre Narciso e
Prometeu. s vezes, a imagem no espelho o engana e comea seu
inexorvel caminho de transmutao num empregado a mais do mega
mercado neoliberal. Mas s vezes ele quebra o espelho e descobre
no apenas a realidade que est por trs do reflexo, mas tambm
outros que no so como ele mas que, como ele, esto quebrando
seus respectivos espelhos.
Contam
que Michelangelo Buonarroti realizou seu David com srias
limitaes materiais.O pedao de mrmore sobre o qual
esculpiu j havia sido trabalhado por outra pessoa, j tinha
perfuraes. O talento
do escultor consistiu em fazer uma figura que se ajustasse a estes
limites intransponveis e to s, da a postura, a
inclinao da pea final25.
Da
mesma maneira, o mundo que queremos transformar j foi trabalhado
antes pela histria e tem muitas perfuraes. Devemos encontrar
o talento necessrio para, a partir destes limites, transform-lo
e fazer uma figura simples e sincera: um mundo novo.
Das
montanhas do sudeste mexicano.
Subcomandante
Insurgente Marcos
Mxico,
abril de 2000.
PS:
Algum tem um martelo mo?
(Traduo:
Wil
13
Ojarasca, en La Jornada, 10 abril de 2000
14
Ivon Le Bot. Los indgenas contra el neoliberalismo, en
La Jornada, 6 maro 2000
15
Carlos Monsivis. Intelectuales Mexicanos de fin de
siglo Viento del Sur 8. 1996. P. 43.
16
Braulio Peralta. Op. Cit.
17
Hctor Aguilar Camn. Leyes y Crmenes. En
Esquina. Proceso 1225, 23 de abril de 2000.
18
Ver Emiliano Fruta, La nueva derecha europea, y Hernn
R. Moheno, Ms all de la vieja izquierda y la nueva
derecha., em Urbi et Orbi. ITAM. Abril 2000)
19
Guillermo Almeyra.
La izquierda de la derecha En La Jornada. 23
de abril de 2000
20
John Berger. Op. Cit. P.234.
21
Jos Saramago. Discursos
de Estocolmo.
Ed. Alfaguara.
22
Comment sortir du libralisme? Ed. Fayard. Pars,
1999.
23
John Berger. Op. Cit. P. 255.
24
Alain Touraine. Op. Cit. P. 15.
25
Pablo Fernndez Christlieb. La afectividad colectiva. Ed. Taurus. P. 164-165.
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